São Paulo, quinta-feira, 25 de janeiro de 1996
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'O Diabo Veste Azul' seduz em clima noir

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Só quem não viu o primeiro filme dirigido pelo ex-ator negro Carl Franklin, "One False Move", ficará surpreso com "O Diabo Veste Azul" (Devil in a Blue Dress). Há muito Hollywood nos devia um filme noir tão habilidoso, fluido e envolvente. Parte do mérito cabe, sem dúvida, ao entrecho fornecido pelo romance de Walter Mosley, aqui lançado pela Companhia das Letras com o título de "O Diabo Vestia Azul". Mas o que Franklin fez com ele não é para qualquer um. Muito menos para aqueles que confundem realismo com titilação barata.
Sem as tropelias nem a carnificina habituais dos thrillers em voga, esta produção de Jonathan "O Silêncio dos Inocentes" Demme privilegia o olhar astucioso e o "mood" sedutor de um certo cinema americano dos anos 40, que Roman Polanski tão engenhosamente soube recuperar em "Chinatown". De certo modo, "O Diabo Veste Azul" é uma variante negra de "Chinatown". Sobretudo porque sua ação também tem como pano de fundo uma Los Angeles de outra época (1948), dominada por políticos corruptos.
E, orquestrada pelo racismo, como não podia deixar de ser em se tratando de uma intriga protagonizada por um detetive negro. Não lhe cairia mal o título de "Watts", já que é neste bairro que Ezekiel "Easy" Rawlins, o involuntário detetive do filme, circula. "Devil in a Blue Dress", porém, é mais noir, mais Raymond Chandler e Dashiell Hammett em suma. E é o espírito destes dois autores que prevalece na tela, a despeito das ambições sóciopolíticas de Franklin, que antes de iniciar o roteiro devorou o ensaio de Mike Davis, "A Cidade de Quartzo", o mais profundo estudo sobre a formação de Los Angeles, editado no Brasil pela Scritta.
O diabo, claro, é uma mulher, naturalmente fatal: Daphne Monet (Jennifer Beals), que, segundo o vilanesco caucasiano que a persegue, "gosta de jazz, mocotó e homens de pele escura". Ela entra na vida de Easy Rawlins (Denzel Washington) como outras tantas invadiram a de Phillip Marlowe e Sam Spade. Easy, no entanto, não se envolve com Daphne por ser um "private eye". Desempregado de uma fábrica de aviões e às voltas com a amortização de sua casa própria, infiltrar-se como investigador na comunidade negra de Los Angeles é o único biscate que lhe oferecem.
Franklin segue as regras básicas do gênero sem se furtar a sutilezas cada vez mais raras em filmes criminais. A maneira como ele realça as marcas indeléveis que Easy carrega consigo (a negritude, a tatuagem no braço, o logotipo da companhia que o demitiu na jaqueta) dá outra estatura a "O Diabo Veste Azul". Seu desfecho, dolorosamente irônico, também trai uma sensibilidade fora do comum. Vale lembrar que aquele mesmo bairro tranquilo que Easy contempla orgulhoso seria devastado por uma onda de violência 17 anos depois.

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