São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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A quimera

MARCELO LEITE

Jornalistas da Folha parecem dispostos a veicular qualquer dado, estatística ou "estudo" que lhe caia nas mãos, com pouco ou nenhum questionamento. O debate só se instaura se algum especialista de fora da Redação procura o jornal, ou se algum colunista mais preparado se aventura no campo. Com isso se empobrece, por exemplo, a discussão dos dois principais temas da atualidade, desemprego e previdência.
Quando muito, o jornal -refiro-me à sua parte mais viva, a reportagem- põe lado a lado informações conflitantes, sacadas segundo as conveniências das partes envolvidas no debate. Apresentar os vários lados é sua função, certo, mas não a única.
A imprensa deve também analisar e interpretar o que lhe é oferecido, aquilatar, discutir. Correr atrás da caça, ou pelo menos apontá-la. E não meter o rabo entre as pernas, deixando o leitor perdido num matagal de siglas (IBGE, Seade, Fipe, Dieese, Ipea etc.).
É o que acontece com o desemprego, do qual os jornais não conseguem -se é que tentam- apresentar um quadro acabado. A Folha destaca com frequência em sua primeira página a queima de vagas na indústria de São Paulo. O presidente da República insiste nos dados supostamente tranquilizadores do IBGE para todo o Brasil. O leitor fica na mesma, sem saber se o Plano Real afetou ou não o emprego, e como. Cabe ao jornal informá-lo.
Mérito
Discutir essas coisas significa entrar no mérito, algo de que os jornalistas cada vez mais se afastam, por incompetência ou oportunismo. A polêmica chama mais a atenção do que o consenso, ou sua preparação. É mais cômodo abusar da máscara e do rótulo de neoliberais e estatizantes.
Abre-se hoje ao país a oportunidade única de debater o desemprego em um fórum realmente representativo, que poderia ser a semente de um pacto à Moncloa, mas ninguém se ocupa de formular o mínimo do mínimo: uma linguagem estatística comum. Ninguém, vírgula. Por sorte, a Folha tem seus articulistas.
A melhor análise dos números do desemprego foi feita por Paulo Nogueira Batista Jr. e publicada na seção Opinião Econômica de quinta-feira, como de hábito com os artigos desse professor da Fundação Getúlio Vargas. Passo ao largo das cifras, para reproduzir um trecho que descreve muito bem a falha jornalística que interessa ao ombudsman:
"Como se sabe, nós brasileiros temos uma aversão congênita a números e somos, por isso mesmo, vítimas contumazes das mais estapafúrdias confusões estatísticas, patrocinadas muitas vezes pelos governos de momento."
"Temos, também, uma certa reverência pela autoridade. E a democracia entre nós, com tudo que ela implica em termos, por exemplo, de vigilância permanente sobre a precisão e confiabilidade das informações que os governantes põem em circulação, ainda está engatinhando."
Citei o mesmo trecho na crítica da edição daquele dia, com o seguinte comentário:
"E (engatinhando) para trás, seria o caso de acrescentar, pois à aversão e à reverência se soma o viés ideológico da concordância com a política econômica que faz o presidente da República apresentar os números da forma como os apresenta. Aos leitores, resta a análise independente de articulistas como Batista Jr. e Delfim Netto" (que tinha dissecado na quarta-feira, em sua coluna na pág. 1-2, a mitologia tucana do frango).
Imprevidência
O tema das duas últimas semanas foi o surpreendente acordo da Previdência. Mas o que se viu nos jornais foi uma crônica de conflito, não de acordo (basta verificar as muitas manchetes da Folha sobre o tema).
Pouquíssimos números vieram à tona, o que contribuiu para tornar mais estéril toda a celeuma. Muita gente que andou escrevendo nos últimos dias parecia disposta a endeusar ou crucificar Vicentinho, mas pouco houve para ler sobre os efeitos previsíveis do acerto sobre as contas da Previdência.
Articulistas como Elio Gaspari, no jornal "O Estado de S.Paulo", espinafraram o presidente da CUT, em nome de 20 milhões de trabalhadores informais, mas poucos dos críticos se definiram sobre a questão central -a previdência tem de ser auto-sustentável ou não?
Não o fazem porque, a partir de então, estarão moralmente obrigados a apresentar ou discutir alternativas, com base em números e projeções, não em princípios ou palavras de ordem. Foi o que cobrou outro colaborador da Folha, Luís Nassif, em 18 de janeiro -novamente, uma coluna de opinião (pág. 2-3):
"Para tentar botar ordem na discussão, deve-se inicialmente responder a uma questão básica: do jeito que está, a Previdência Social é atuarialmente viável? Se não é, solicita-se gentilmente a todos os debatedores que centrem a discussão nas formas de torná-la viável".
É claro que não cabe a um repórter escrever isso nas matérias do noticiário, pois seria sobrecarregá-las com opinião. Mas é esse tipo de atitude e de raciocínio que deve inspirar suas perguntas. Infelizmente, a maioria delas ainda é comandada pela mentalidade "o-que-o-senhor-diz-do-que-fulano-disse".
Não é no papel de leva-e-traz para os homens no poder que a Folha vai contribuir para formar a opinião pública. Se é que ela mesma, ou alguém, ainda acredita nessa quimera.
Com a mão do ganso
O leitor Geraldo Anhaia Mello escreveu ao ombudsman acusando o pastor Jaime Wright de plagiar o escritor norte-americano Milton Olson em artigo para a Folha, "Gansos, parcerias e o Natal", publicado em 22 de dezembro. O texto recorria à formação em "V" empregada durante migrações por essas aves para ilustrar a interdependência e a solidariedade entre os homens.
Ouvido pela Coordenação de Artigos e Eventos do jornal, responsável pela aceitação do artigo, Wright justificou-se apresentando a fonte que de fato utilizou, uma revista de missionários católicos irlandeses ("IMU Report"). Segundo o pastor, a publicação autoriza a reprodução de seu material livremente.
Não importa o que a revista autoriza ou deixa de autorizar (menos ainda se esta é que plagiou o escritor). Ao omitir a fonte daquelas idéias, Wright implicitamente disse que eram suas, originais, o que era falso e eticamente inaceitável. A prática, como não poderia deixar de ser, é condenada pelo "Novo Manual da Redação" (pág. 41):
"Usar texto, idéias ou trabalho de levantamento de pessoa ou instituição e não atribuí-los à verdadeira fonte é uma prática inadmissível na Folha."

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