São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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O desafio de Mário

JOSÉ MIGUEL WISNIK
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao longo dos exatos anos da década de 70 fizemos teses de mestrado e de doutorado, defendidas quase nas mesmas semanas, fomos orientados por Antonio Candido, admirávamos apaixonadamente dona Gilda de Mello e Souza, morávamos próximos, e nosso assunto de fundo era um mesmo escritor difícil, Mário de Andrade. Dávamos aulas no mesmo curso de letras. Agora todo esse paralelismo fica óbvio, e óbvio até demais, eu diria, porque sugere uma simbiose que na verdade não existia entre nós, e nem precisava haver. Ele era um montesclarense de olhar muito claro, um moço do sertão rosiano, e eu vinha das praias da baixada de Santos, praias pobres de autonomeação literária, ricas de música de vanguarda e futebol.
Ambos nos sentíamos igualmente desafiados pelo nosso escritor difícil. Eu, pela relação entre música e literatura, e ele, pelo desejo de clarificar as relações entre criação e crítica, emaranhadas num poeta reconhecidamente menos nítido que Cabral e menos límpido que Bandeira, por exemplo, mas de uma complexidade particular que pedia por isso mesmo critérios próprios de entendimento.
João Luiz foi apurando sem alarde os instrumentos de sondagem dessa complexidade, com a abertura intelectual que o fazia dominar com solidez as trilhas da análise formal, ideológica e psicanalítica (para nós a querela entre formalismo e sociologismo era uma espécie de mal-entendido, acho que posso dizer).
Na sua dissertação de mestrado Lafetá situou o suposto psicologismo crítico de Mário de Andrade, mostrando que havia no poeta ensaísta uma aguda consciência formal, e depois, na "Figuração da Intimidade", expôs as linhas nada evidentes do seu imaginário poético.
A propósito da minha tese de doutorado, a "Dança Dramática", sobre a música em Mário, que permanece inédita como um nó que eu nunca desatei nem cortei, João Lafetá fez na época comentários preciosos e precisos sobre as reações desencontradas que ela provocou, tanto por suas insuficiências como pelas questões cruciais que ela levantava para mim mesmo, e das quais eu não deveria me perder, segundo ele identificava de maneira inequívoca, generosa e circunstanciada. Tinha a mesma lucidez empenhada ao dar aulas, orientar alunos, arguir teses ou discutir apaixonadamente com os amigos.
Estou sendo pessoal, mas queria que essas palavras pudessem ser mesmo muito mais pessoais, como conversa de amigos que não se encontram, guardada e sempre continuada.

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