São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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A universalidade de um viajante

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

A história de que Minas é terra de contista pode ser marketing, em grande parte, porém, o fato aí está. Com "As Baleias do Saguenay", o belo-horizontino João Batista de Melo é mais um mineiro que surge e se afirma na literatura por intermédio do conto.
Agraciado com o Prêmio Minas de Cultura em 1989, na sua estréia, com "O Inventor de Estrelas", Batista Melo não poupa esforços, no entanto, para mostrar que essa contingência regional não implica, necessariamente, adesão a qualquer provincianismo.
Os dez contos deste segundo livro poderiam ser divididos em três grupos temáticos, ainda que informalmente. No primeiro, Melo parece, à luz do italiano Antonio Tabucchi -particularmente de seu "O Anjo Negro"-, dar-se como diretiva uma escapada geral, tanto do presente domo da sua terra, por meio de viagens no tempo ou no espaço. Estão aí os três melhores contos do livro.
Em "O Caminho das Índias", o narrador é escrivão numa expedição de Cristóvão Colombo. "Navega apenas por navegar", não tem ambições, não vê prazer na aventura. Trata-se de um pessimista convicto em pleno alto-mar, o que obviamente não pode coexistir com o espírito dos descobrimentos.
O conto que dá título ao livro, "As Baleias de Saguenay", remete o leitor a águas estranhas do Canadá, para onde um homem viaja em busca do pai, o qual, afetado por uma grave doença, partira sem anunciar à família o seu destino.
Desse mesmo grupo faz parte ainda "A Moça Triste de Berlim", reconstituição de um vôo do zepelim germânico Hindemburg entre Frankfurt e o Rio de Janeiro, na época do Estado Novo, com um terrorista a bordo.
O segundo grupo reúne contos que exprimem certo desgosto diante da inevitabilidade da decomposição ambiental, da desarmonia entre velho e novo, da melancolia do tempo que deixa marcas onde menos se espera.
"Depois do Crepúsculo", por exemplo, aborda velhice e solidão a partir da relação de amizade entre um padre e um aposentado com boa formação intelectual. "Retratos de uma Paisagem" opõe "gringos" e nativos numa pequena aldeia praiana.
Incluem-se aí "O Homem que Fraudava Latas", alegoria do célebre "o feitiço contra o feiticeiro"; "A Lanterna Mágica", nostalgia de uma sala de cinema que é demolida; e "Os Caminhos do Vento", espécie de libelo contra as usinas nucleares.
Em todos os contos, destacadamente nos do primeiro grupo, Melo demonstra possuir traquejo e imaginação prodigiosa ao compor frases e escolher palavras. O texto é sonoro, bem temperado, sem panfletices ou sentimentalismo, o que torna prazerosa a sua leitura. Leia, por exemplo, este trecho de "O Caminho das Índias":
"O dia seguinte esquenta. Atordoados pelo calor, os homens se revoltam, suspiram perfídias, suam conspirações. Alguém propõe jogar Colombo no oceano, girar a nau e regressar ao porto de Palos, devolvendo aos reis Fernando e Isabel a amargura de um fracasso. Assim, estaríamos derrotados, porém vivos".
Falta comentar o terceiro grupo, no qual o autor faz um pequeno mergulho na ficção científica -outra tentativa de escapar do tempo presente-, único ponto frágil do livro.
Em "FC", o narrador é um computador que conta histórias e "enxerga" o futuro. Já em "Uma Voz", um navegador espacial "capta" uma voz feminina no cosmos, debate-se com ela, compondo uma parábola que remete, conforme a própria epígrafe do conto, à transformação da linguagem numa espécie de oferenda sagrada.
Apesar de manterem o alto nível de carga poética presente em todo o livro, esses dois contos não convencem. Não nos levam para um "outro mundo", denunciam uma fadiga, um esforço artificial de escrita. Ficção científica é sempre um perigo, faca de dois gumes para quem escreve. Tem que ser "ou dá ou desce", como diria o bispo, e, neste caso, Melo ficou no meio do caminho.

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