São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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A emergência de uma reforma

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

"Crise Econômica e Reforma do Estado no Brasil" é um livro que trata da crise econômica que tomou conta do Brasil e da América Latina na década de 80, de seus desdobramentos políticos e das reformas econômicas que desde meados dessa década começaram a ser empreendidas, mas que em meados dos anos 90 permanecem inconclusas. É também um livro sobre a América Latina, porque a crise dos anos 80 foi essencialmente uma crise latino-americana. É impossível compreendê-la apenas pelo contexto de um único país. Para escrever este livro eu tive que estudar as economias de vários países latino-americanos, particularmente as do México e da Argentina. Por isso, seu subtítulo é: "Para uma Nova Interpretação da América Latina".
Este livro analisa as interpretações sobre o Brasil e a América Latina, as correspondentes estratégias de desenvolvimento econômico e as respectivas coalizões de classes ou pactos políticos abrangentes. A cada interpretação ou abordagem sobre as causas da crise da América Latina há uma estratégia de desenvolvimento associada que só pode ser implantada se uma coalizão de classes for capaz de celebrar um pacto político informal que a sustente.
O livro começa com uma interpretação da crise latino-americana, caracterizando-a como uma crise do Estado, e propõe que a estratégia adequada para a sua superação é, ou será, uma estratégia orientada ao mercado, mas será também pragmática e social-democrata, e não uma estratégia neoliberal. A orientação ao mercado permanecerá como uma prioridade, mas o objetivo não é atingir o Estado mínimo, e sim reconstruir o Estado, devolvendo-lhe capacidade de governar. Por outro lado, além de ser orientada ao mercado, isto é, voltada para a competitividade interna e externa, as reformas deverão considerar cuidadosamente os interesses nacionais dos países.
O velho nacionalismo -o nacionalismo que estava atrelado à estratégia de substituição de importações- perdeu espaço na América Latina, mas uma nova forma de nacionalismo, em que o interesse nacional é defendido caso a caso, continua sendo extremamente relevante. No Brasil, por exemplo, as reformas econômicas levaram um tempo maior para serem empreendidas justamente porque elas eram consistentemente não apenas orientadas ao mercado, mas também orientadas aos interesses do Brasil. Elas não estavam particularmente preocupadas com a construção de uma credibilidade favorável ao Brasil em Washington e Nova York, mas sim em proteger os interesses nacionais e garantir os fundamentos macroeconômicos.
Abrangência
Este livro lida apenas com o Brasil e a América Latina, mas, na sua introdução, eu sugiro que essa interpretação pode também ser estendida à Europa Oriental e, tomando-se algumas precauções, à maior parte dos países desenvolvidos. A década de 80 foi um período de crise para a América Latina e para a Europa Oriental. Nos países desenvolvidos, a crise foi mais branda, mas, mesmo assim, houve, desde o início dos anos 70, uma queda efetiva de suas taxas de crescimento, ao mesmo tempo em que o desemprego transformou-se no principal problema desses países: nos últimos 20 anos, o crescimento foi correspondente à metade do que havia sido nos 20 anos anteriores.
O Brasil e a Argentina estão apenas começando a sair da crise, mas estão longe de retomar um processo de crescimento sustentado. Na Europa Oriental, a transição do estatismo para o capitalismo está sendo extremamente penosa. Embora já esteja ocorrendo uma recuperação, na maioria dos países, a renda per capita é ainda 25% menor que em 1989.
Em síntese, sugiro que, enquanto a crise dos 30 foi uma crise keynesiana, definida por uma crônica insuficiência de demanda, a minha hipótese é que a crise dos anos 80 e 90 é uma crise do Estado, é uma crise fiscal e uma crise do modo de intervenção e de administração do Estado.
O colapso do comunismo foi o ápice de uma longa crise que se iniciou na década de 70. Muitos pensam que isto foi o triunfo do capitalismo, mas, na verdade, foi apenas o fracasso de uma forma radical de intervenção do Estado, que ocorreu ao mesmo tempo em que o próprio capitalismo passava por uma crise.
O primeiro choque do petróleo foi o ponto de inflexão para a economia mundial, mas, antes disso, já havia sinais de problemas na economia, expressos, por exemplo, na suspensão da convertibilidade do dólar. Desde então, a taxa de crescimento dos países desenvolvidos decresceu, ao mesmo tempo em que se abria espaço para o início de uma nova onda conservadora. Os Estados Unidos perderam a sua hegemonia sobre a economia mundial. Sua taxa de crescimento foi especialmente insatisfatória, a taxa de salários estagnou, a renda se concentrou ainda mais e o número de pessoas abaixo da linha de pobreza continuou a crescer.
Por outro lado, os Estados Unidos mantiveram a sua ideologia militar e ideológica. As principais universidades americanas são ainda excepcionais centros de excelência. Elas são -juntamente com um número cada vez menor de outras indústrias- uma indústria exportadora, atraindo estudantes de todas as partes do mundo. Elas permanecem como uma força dominante nos campos científico e ideológico e construíram conceitos teóricos e modelos econômicos e políticos que serviriam de base à onda neoconservadora ou neoliberal que tomou conta dos Estados Unidos e, posteriormente, do mundo todo.
Essa onda, que nos Estados Unidos foi representada pela macroeconomia monetarista de Friedman, pela escola das expectativas racionais e pela escola da escolha pública ou da escolha racional, foi, por um lado, uma resposta à redução do crescimento das economias desenvolvidas desde os anos 70 e à crise do Estado que estava na origem dessa queda do crescimento. Por outro lado, ela sinalizava o fracasso das políticas econômicas keynesianas em assegurar o pleno emprego, a estabilidade de preços e o crescimento.
No Primeiro Mundo, esse novo conservadorismo, moderno, intelectualmente sofisticado, pessimista com relação ao gênero humano, materializava-se na interpretação neoliberal. O neoliberalismo é uma forma radical e utópica do liberalismo econômico clássico. Ao mesmo tempo que radicalizava o velho liberalismo burguês, propondo o domínio absoluto do mercado e a correspondente meta do Estado mínimo (que apenas garante a propriedade e os contratos), o neoliberalismo se engajava na modernidade representada pelo desenvolvimento tecnológico rápido e pela globalização da economia, distinguindo-se, assim, do velho conservadorismo voltado para o passado.
O neoliberalismo surgiu nos Estados Unidos e na Europa quando, a partir dos anos 70, as políticas keynesianas se provaram incapazes de controlar a economia: quando a inflação se acelerou, o desemprego cresceu e as taxas de crescimento diminuíram. Na América Latina, a mesma crise econômica ocorreu dez anos depois, na década de 80, mas de uma forma mais aguda. Sua contrapartida ideológica foi o "consenso de Washington" -que se tornou dominante na região apenas no final da década de 80-, consenso que formalmente limitava-se a afirmar a necessidade de liberalização comercial, privatização e ajuste fiscal, mas que na verdade implicava em uma guinada conservadora profunda.
As reformas econômicas propostas pelo credo neoliberal eram radicais e irrealistas. Mas não há dúvida de que era necessário implementar reformas orientadas ao mercado. Depois de vários anos de expansão, o Estado tornara-se distorcido, a crise fiscal paralisara sua capacidade de governar, as economias estavam claramente superprotegidas e super-regulamentadas. Uma síntese pragmática entre as antigas estratégias desenvolvimentistas e a crítica neoliberal se fazia necessária.
Essas reformas estão ocorrendo na América Latina. O ajuste fiscal, a liberalização comercial, a privatização, a desregulamentação -todas reformas do Estado- e também um processo de reestruturação das empresas estão ocorrendo. Algumas dessas reformas foram bem concebidas: além de orientadas ao mercado foram também orientadas à América Latina. Outras visaram apenas atender a uma estratégia de "confidence building", como foi o caso do México de Salinas. De um modo geral, nos anos 90, após reformas econômicas substanciais que reduziram o aparelho de Estado e desregulamentaram a economia, os países latino-americanos estão gradualmente retomando o crescimento.
A causa da crise foi o excessivo e distorcido crescimento do Estado: do Estado desenvolvimentista no Terceiro Mundo, do Estado comunista no Segundo Mundo, e do "welfare state" no Primeiro Mundo. As potencialidades do mercado na alocação de recursos, na coordenação da economia, tinham sido erroneamente subavaliadas. O Estado tinha se tornado muito grande, aparentemente muito forte, mas, de fato, estava cada vez mais fraco, ineficiente e impotente, dominado pela indisciplina fiscal, vítima de grupos especiais de interesse, engajados em práticas privatizadoras do Estado, ou seja, no "rent seeking".
A crítica neoliberal afirma que a solução para essa crise seria obtida com a redução do tamanho do Estado. Haveria a conveniência de não somente destruir o Estado comunista mas também o Estado desenvolvimentista e até mesmo o "welfare state". O Estado não deveria desempenhar qualquer função econômica, exceto o de garantir os direitos de propriedade e a moeda nacional. De acordo com a "retórica da reação", que Hirschman (1991) tão bem denunciou, mesmo as funções sociais do Estado deveriam ser eliminadas ou reduzidas, dado seus "efeitos perversos". Podem existir falhas de mercado, mas pior que elas seriam as falhas do governo.
A crise do Estado
Minha reação pessoal à onda neoconservadora foi sempre crítica, embora respeitosa. Tornou-se claro para mim que o novo conservadorismo realizou uma crítica útil dos problemas enfrentados pelo mundo, particularmente para as distorções que vitimaram o Estado, mas que, devido à sua ideologia, ao seu dogmatismo e à falta de pragmatismo, apresentou soluções parciais, senão equivocadas para esses problemas.
O mercado é certamente um mecanismo maravilhoso. Eu não tenho restrições à idéia de que todas as reformas econômicas devem ser orientadas ao mercado. Eu diria até que elas deveriam ser "market-biased" -ter um viés a favor do mercado. O que eu quero dizer com isso é que devemos sempre partir do pressuposto de que o mercado terá um papel positivo na coordenação da economia. Mas as reformas não deveriam ser cegamente direcionadas ao mercado, nem tampouco voltar-se apenas para uma estratégia de "confidence building" -construção de confiança- no país. Elas não deveriam transformar o mercado, que é apenas uma instituição criada pela sociedade e regulada pelo Estado, em uma espécie de mito. Elas não deveriam assumir que a construção da confiança é boa em si mesma.
A obtenção de confiança ou credibilidade em Washington ou Nova York pode, no curto prazo, estimular investimentos no país. Mas nem os burocratas e políticos de Washington, nem os operadores financeiros de Nova York podem ser vistos como os depositários da "racionalidade econômica universal" e muito menos como pessoas preocupadas com os interesses nacionais dos países da América Latina. Na verdade, uma estratégia de construção da credibilidade pode muito bem ser desenvolvida à custa dos interesses nacionais e dos fundamentos macroeconômicos, como presenciamos no México.
Na verdade, é um erro identificar orientação ao mercado com coordenação pelo mercado. Todas as economias, para que sejam eficientes, devem ser orientadas ao mercado. Uma economia orientada ao mercado é uma economia fortemente competitiva, no mercado doméstico e internacionalmente. Mesmo dentro das empresas, a competitividade é um princípio gerencial e motivacional básico. Entretanto, a coordenação da economia não é feita apenas pela competição, ela é também um resultado da cooperação. E, para haver cooperação ao nível nacional e internacional, as sociedades necessitam contar com o papel coordenador suplementar desempenhado pelo Estado.
Em todo sistema econômico, não há apenas um, mas sim dois princípios ou mecanismos de coordenação: o mercado e o Estado. Os sistemas econômicos bem-sucedidos são normalmente aqueles que combinam, de forma equilibrada e dinâmica, a participação do Estado e do mercado na coordenação da economia. Alguns países europeus social-democratas, por um lado, e o Japão e os países do Leste asiático, por outro lado, são bons exemplos disso.
Partindo dessas observações bastante genéricas, cheguei a um conjunto de idéias que eu decidi chamar de "abordagem da crise do Estado", que pode, ao final, constituir-se em um terceiro momento paradigmático de interpretação da América Latina.
Eu fui formado no contexto do primeiro momento paradigmático: a interpretação estruturalista e nacional-burguesa da América Latina, que surgiu a partir das idéias de Prebisch (1950). Após a crise dos anos 60, eu participei ativamente da formulação do segundo momento paradigmático para a interpretação dessa região: a nova teoria de dependência, que encontrou em Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (1969) sua formulação mais acabada. Ambas podem ser agrupadas segundo uma denominação mais genérica: a interpretação nacional-desenvolvimentista, que foi o resultado do estruturalismo latino-americano e do keynesianismo, ambos vagamente combinados às tradições marxista e weberiana.
A interpretação nacional desenvolvimentista foi, entretanto, logo vítima de toda sorte de populismo. Considerou-se que Keynes seria favorável a déficits orçamentários crônicos. O argumento da indústria nascente, utilizado a favor do protecionismo, transformou-se em uma base para o protecionismo permanente. Interesses burocráticos foram confundidos com interesses dos trabalhadores e da esquerda. Desde os anos 60, essa abordagem enfrentou uma crescente dificuldade para propor políticas econômicas sensatas para a região, ao mesmo tempo em que sua respectiva estratégia de industrialização -a substituição de importações- dava provas de exaustão.
No começo dos anos 80, quando eclodiu a crise da dívida externa e a inflação explodiu na América Latina, meu interesse se voltou cada vez mais para questões macroeconômicas de curto prazo, particularmente as relacionadas com a inflação e os desequilíbrios do balanço de pagamentos.
Nesse momento, eu estava fazendo uma transição do estruturalismo, que estava preocupado principalmente com estratégias de desenvolvimento de longo prazo, para uma abordagem mais voltada ao curto prazo, na qual a escassez, a eficiente alocação de recursos, a poupança pública e o equilíbrio orçamentário são o centro das atenções. Mas, isso, sem renunciar à minha origem estruturalista.
Por outro lado, a abordagem neoliberal, embora estivesse correta quando propunha reformas do Estado orientadas ao mercado e defendia a disciplina fiscal, revelava-se dogmática, faltando-lhe pragmatismo e operacionalidade. Assim, uma alternativa é necessária, algo que represente uma síntese entre o velho desenvolvimentismo e o novo neoliberalismo.
Em termos teóricos mais amplos, o neo-estruturalismo pode ser essa alternativa. Eu proponho que "a abordagem da crise do Estado", que eu discuto na introdução deste livro e utilizo na maioria de seus capítulos, corresponda a uma nova interpretação para a região. Neste livro, eu proponho que essa interpretação, por sua vez, corresponda a uma estratégia de reformas orientadas ao mercado, mas também orientadas aos interesses do Brasil e da América Latina. Proponho que seja uma estratégia pragmática e social-democrata de desenvolvimento. Este livro, na verdade, além de analisar a crise e as reformas no Brasil, pode ser analisado como uma busca de uma nova interpretação e de novas estratégias de desenvolvimento para a América Latina.

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