São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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Ruídos na canção neoliberal

ANTONIO NEGRI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sabe-se que uma luta social, imprevista e imensurável, nova na sua forma de agir, pacífica embora bastante radical, que durou da metade de novembro até o final de dezembro, tomou conta da França, não só de Paris, mas do país todo.
Este movimento não terminou. Foi, podemos afirmar, suspenso, durante as festas de final de ano. Todos aguardam que ele recomece, esporadicamente, endemicamente, de forma contundente, ninguém sabe: todos sabem porém que algo mudou, tanto na consciência individual como no imaginário coletivo.
Trocando em miúdos, por meio da luta as pessoas se convenceram de que é possível resistir à "nova ordem mundial", ditada pelo liberalismo e multiplicada pelas regras financeiras, desde a redução do déficit, às privatizações, da reorganização móvel e flexível do trabalho, a uma nova disciplina na vida. Existe uma "nova possibilidade".
A luta começou em torno de algumas reivindicações dos funcionários das empresas públicas (transportes, energia, comunicações e ensino), mas o movimento de repente cresceu, o objetivo agora é a retirada do plano governamental (em relação às mudanças sociais e à drástica redução do déficit público) ou seja, da revisão da política neoliberal imposta -segundo o governo- pela globalização dos mercados e pelas regras da unificação européia. A greve contou com o apoio ativo de grande parte da população. O movimento foi reconhecido como de "interesse geral". A mídia não conseguiu motivar as pessoas com seus slogans antigrevistas, e qualquer iniciativa de organizar a população contra a greve não deu em nada.
Assim, durante um mês, paralelamente às grandes passeatas dos sindicatos, um grande número de trabalhadores, que não estava em greve, tomou a cidade, não menos ameaçadoramente, durante o dia e a noite -a pé, de bicicleta, pedindo carona- co-produzindo assim o movimento. Uma nova forma de luta foi criada: a greve metropolitana.
No momento em que escrevo, o resultado ainda é incerto. Se por um lado os funcionários públicos venceram, obtendo recuo por parte do governo e o pagamento dos dias parados, por outro o governo manteve seu projeto. Até quando? Os governantes pedem um novo consenso, declarando que não existe outra alternativa para a redução da dívida pública. De fato, não só entre os grevistas ou entre aqueles que apoiaram o movimento, mas também em vários setores da intelectualidade, surge a consciência de que -se não no plano nacional, mas certamente no europeu- possa ser construída uma alternativa à lógica monetária e liberal (que pode fragmentar a sociedade), isto é, que um novo dispositivo, igualitário e sólido de aumento da produtividade, da redistribuição da riqueza e levando em conta a utilidade social, possa ser proposto no plano continental.
Acontece que, a curto prazo, é muito improvável que o governo francês consiga restabelecer um consenso ao seu projeto e ao desenho do liberalismo mediado. Poderíamos afirmar que este extraordinário fato francês ao expressar, por enquanto timidamente, mas de forma bastante eficaz, outras alternativas de desenvolvimento tenha derrubado, ou pelo menos freado, a tendência que, desde Thatcher, Reagan e a derrubada do Muro de Berlim, parecia consolidada num período secular no plano mundial? A resposta é incerta.
Se os acontecimentos do final do ano quebraram, de forma fascinante como só os franceses sabem fazer nas suas insurreições, com a tendência até aqui hegemônica do domínio liberal, nada nos permite concluir que esse exemplo seja contagioso como o foi em outras épocas.
Todavia, mesmo com a ausência da comunicação imediata e internacional, a novidade do fato dificilmente será neutralizada. Ela exprime de forma contundente em um país altamente politizado, num momento delicado da unificação européia, a percepção da insuportabilidade do regime neoliberal, a certeza de que o comando capitalista é hoje mais insustentável do que tenha sido no passado (trabalhado e constituído pelo socialismo) e que sua superação é o desejo de uma multidão. Uma ilusão?
Talvez, como já aconteceu tantas vezes, quando os movimentos vindos de baixo contestavam radicalmente o exercício do poder. Mas uma "ilusão real".
Retornemos a análise do movimento de dezembro. Nada de antigo estava presente. O "sujeito" que luta, nas fábricas, nas praças, não é simplesmente a classe operária; os uniformes azuis de Putilov, Detroit e Mirafiori são hoje peças de museus. Ao contrário, é um outro tipo de proletariado, uma classe operária evoluída, uma massa escolarizada. Todos lêem Zola, mas ninguém o vive.
Quem dirige o trem frequentou a escola durante 20 anos, um técnico durante 23. Quanto ao "objeto" para combater, não é mais salário pessoal, mas a dimensão "biopolítica" da renda, ou seja, a quantidade de trabalho necessária para garantir a reprodução da vida, para si e para os filhos, num arco da existência das gerações, e às suas necessidades crescentes.
O lugar da luta é o serviço público, ou seja, lá onde a cooperação social, a cooperação interativa dos trabalhadores e dos cidadãos (transporte, escola, telecomunicação) é necessária para definir a produtividade. A "forma" de luta é também nova: são as assembléias de base que decidem objetivos, tempos e formas do movimento, e os sindicatos -se quiserem sobreviver- se tornaram os porta-vozes da vontade da base.
Um corpo novo que apenas por defeito da terminologia ainda chamamos "proletariado" é o que aqui se revela. Veementemente. Um produto do desenvolvimento capitalista? Sem dúvida. Uma figura pós-industrial? Sem dúvida. Mas com o mesmo ódio contra a exploração que caracterizou os operários de Putilov, de Detroit e de Mirafiori, mas com uma capacidade enorme -que estes homens e mulheres mostram na luta, muito maior do que seus ancestrais demonstravam- de tomar as rédeas do próprio destino.
É talvez a saudade do velho comunismo, de traduzir a luta em linguagem burocrática, de cada iconografia que transforma esta revolta tão anticapitalista em uma feliz promessa. São a resistência e os movimentos capazes de se transformarem no poder constituído. Colocar frente a essa nova potência a alternativa "liberalismo ou barbárie", daqui para frente será um insulto à inteligência humana. Quanto à terrorística afirmação "tecnocracia ou canalhice", essa já caiu no ridículo.
No movimento de dezembro, frente à polícia da dúvida, renasceu a política do desejo.
Não está nessa ilusão real a política tout court?

Tradução de SIMONETTA PERSICHETTI

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