São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um iluminismo às avessas

ADRIANO SCHWARTZ
DA REDAÇÃO

O escritor português José Saramago aprecia os provérbios. Ao longo de toda a sua obra, eles aparecem dezenas de vezes -em algumas delas, ele os cita e confirma, em outras, mostra que eles podem não ser tão sábios quanto parecem à primeira vista. O seu último romance, lançado há pouco no Brasil, "Ensaio sobre a Cegueira", não é exceção.
"Em terra de cego, quem tem olho não é rei". Dessa constatação específica, que atravessa todo o livro, pode-se tirar uma regra geral: não há lugar para a razão -a visão- em um mundo de desrazão -a cegueira.
O título não poderia ser mais claro. Trata-se de um ensaio -estudo teórico sobre determinado assunto, menor ou menos aprofundado que um tratado. Não poderia, porém, ser mais enigmático. "Ensaio sobre a Cegueira" é um romance, construção literária fictícia, obra da imaginação.
Com essa dubiedade inaugural, Saramago cria um paradoxo. Àqueles que o viram sempre como um romancista histórico, ele parece dizer: "Satisfaçam-se agora, este não é um 'Memorial (do Convento/1982)', não é uma 'História (do Cerco de Lisboa/1989)', não é um 'Evangelho (Segundo Jesus Cristo/1991)'. É um 'Ensaio'. Nunca antes me afastei tanto da ficção".
Se houvesse uma gradação possível de "nível de ficção" -e não há, é bom dizer-, "Ensaio sobre a Cegueira" seria, porém, o "mais fictício" livro do autor.
Em toda a última fase da obra de Saramago -a mais importante, que começa com "Levantado do Chão" (1980)-, houve sempre uma característica básica: a presença, mais ou menos acentuada, da cultura, das tradições e da história portuguesas.
Esta presença se concretizou, muitas vezes, por exemplo, com referências, remissões ou citações a Fernando Pessoa -presença que atinge seu impressionante ápice em um de seus livros mais complexos, "O Ano da Morte de Ricardo Reis" (1984). O reflexo do escritor português mais importante deste século, que perpassa toda a obra saramaguiana, não está "visível", entretanto, em "Ensaio Sobre a Cegueira", como está até mesmo no "Evangelho Segundo Jesus Cristo".
"Ensaio" se estrutura de modo semelhante a "Jangada de Pedra" (1986): os personagens principais são apresentados separadamente, unem-se por um fato espetacular (a cegueira, no "Ensaio"; a separação da Península Ibérica, em "Jangada"), em determinado momento a situação anômala regride, volta-se, aparentemente, ao estado inicial, mas a vida de todos já foi irremediavelmente alterada.
Quando o primeiro personagem do livro fica cego, ocorre uma sensação de estranhamento no leitor -cegar em tal circunstância e de tão diferente modo não é usual. Mas é só quando a cegueira acomete o segundo personagem -o ladrão- que se percebe a direção que a obra tomará: cegueira se pega, mas não como uma gripe, e sim como uma Aids amplificada, para a qual não há chance nem de cura nem de prevenção.
É até possível dizer, apesar de o autor em questão ser Saramago, que se trata de uma parábola sobre uma momentânea desistência divina. Metonimicamente, ao aproveitar-se da impotência do primeiro cego, o ladrão compromete todos os homens, a culpa de um passa a ser a culpa de todos. Ele assume o papel do último Adão, aquele que comete o derradeiro pecado da humanidade, porque, depois de seu ato transgressor, já não existe uma humanidade, mas algo distinto, inominável como todos os personagens do livro.
A cegueira na obra remete imediatamente à tragédia edípica. Se Édipo fura os próprios olhos para restaurar o equilíbrio do universo -mesmo inconsciente, a falha do herói trágico tem seu preço-, os habitantes do mundo de Saramago cegam porque o universo atingiu o limite final de desequilíbrio, do qual não há mais volta. Nesse sentido, a experiência da cegueira -de que o único equivalente físico e simbólico é a da castração- é um rito de (re)iniciação necessário, um novo e fundamental dilúvio.
Os excluídos da arca (todos menos uma única personagem, uma solitária Noé), contudo, não são cegos comuns -aqueles que vivem na total escuridão, na ausência de luz-, mas o oposto. Os cegos, no romance, são iluminados, vivem na mais completa claridade, no branco absoluto (um "iluminismo" às avessas absolutamente adequado a um livro que metaforiza a (des)razão). Assim, não são, a rigor, cegos. Eles simplesmente não conseguem enxergar -o que é muito diferente.
Acrescenta-se, com isso, mais um dado ao já ambíguo título da obra: ele é falso. Assim como o romance trata de uma humanidade que não mais é, o título sugere uma cegueira que não existe, trata-se, a princípio, de uma "doença" nova, que logo se transforma em característica da raça.
Se o mal é novo, a consequência básica -sofrimento- é velha conhecida do homem e, por extensão, dos escritores. Alguns resenhistas já compararam o livro ao "Deserto dos Tártaros", do italiano Dino Buzatti, ou ao "Alienista", de Machado de Assis. Ambas as lembranças são legítimas, mas outra me parece mais importante.
A comparação é aterradora para qualquer escritor, mas o sofrimento em "Ensaio sobre a Cegueira", tanto o interno, dos personagens, quanto o externo, de quem acompanha a narrativa, rivaliza com o propiciado pela leitura de "O Processo" e, principalmente, "Na Colônia Penal", ambos do tcheco Franz Kafka.
Ocorre que, poucas vezes, um autor terá provocado tanto em seus leitores tal sensação de desespero. "Até onde ele pretende ir?" é uma pergunta que, a cada nova sequência do enredo, atinge o leitor. Resta saber quantos leitores conseguirão atenuar o impacto do golpe e quantos serão nocauteados. A estes, o consolo (esperança?, lição?) pode estar naquele velho ditado: "É caindo que se aprende".

Texto Anterior: Uma paródia mal-humorada
Próximo Texto: Ruídos na canção neoliberal
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.