São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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Freud pode ser sexualmente transmissível

ELISABETH ROUDINESCO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em dezembro de 1995 deveria ter sido apresentada na Biblioteca do Congresso dos EUA, em Washington, em comemoração ao centenário da psicanálise, uma exposição financiada em parte por fundos austríacos, intitulada "Sigmund Freud, Conflito e Cultura".
Uma petição de uma violência inaudita, assinada por 42 intelectuais americanos, entre os quais historiadores da corrente dita "revisionista", feministas radicais, neurobiólogos, conseguiu impedir, no entanto, sua apresentação. Enquanto isso, na Califórnia, realizava-se um colóquio da Academia Americana de Psicanálise sobre o seguinte tema: "Há um lugar para a psicanálise na cultura contemporânea?" Ao tomar conhecimento da decisão da Biblioteca do Congresso de renunciar à exposição, os palestrantes reunidos na costa Oeste, em vez de mobilizar-se contra a intolerância, entraram em pânico com a idéia de uma possível resposta negativa que eles mesmos poderiam dar à questão colocada pelo título do colóquio.
Devemos estar sonhando: como a psicanálise pode ser golpeada no final do século 20 pela proibição e ameaça de caça às bruxas, não pelos aiatolás no Irã, mas nesse imenso país democrático que foi a terra mais generosa no abrigo de judeus freudianos cassados pelo nazismo na Europa? Para quem conhece a situação americana do freudismo, a reação dos psicanalistas ortodoxos, membros da poderosa International Psychoanalytical Association (IPA), não surpreende. Ameaçados pelo desenvolvimento de uma farmacologia a serviço do hedonismo individual -culto da saúde, higienismo, pílulas de felicidade etc- eles estão preocupados acima de tudo com problemas de clientela, de prestígio e com problemas fiscais. Por isso não tomam a defesa de sua doutrina. Continuando a reivindicar piedosamente a imagem do pai fundador, transformado em ídolo intocável pela historiografia oficial, eles deserdaram os estudos acadêmicos e deixaram aos universitários, os "Freud's scholars", a preocupação em redigir os trabalhos de pesquisa e de erudição sobre seu próprio domínio.
Ora, algumas dessas universidades, depois de ter encontrado inúmeras dificuldades para ter acesso aos Arquivos-Freud da Biblioteca do Congresso, cuidadosamente guardados desde a Segunda Guerra Mundial pelos adeptos da ortodoxia psicanalítica, acabaram por formar uma escola revisionista que consistiu inicialmente em negar a idéia de que Freud teria sido o fundador de uma concepção inovadora da sexualidade e do inconsciente e afirmar, em seguida, de fio a pavio, que ele não passava de um mistificador e de um perverso: ele, dizem, teria abusado sexualmente de sua cunhada, engravidando-a, e tentado, além disso, seduzir a filha. Todas essas fantasmagorias foram enunciadas sem a menor prova.
Nascida em torno de 1978, essa corrente revisionista deve seu sucesso ao fato de ter sido contemporânea da progressiva aceitação na universidade americana dos pressupostos da civilização dita ocidental, que resultaram no surgimento do movimento da "political correctness" no final dos anos 80. Assim como as feministas, que rejeitam o poder masculino a ponto de viverem separadas da comunidade dos homens e de considerarem Freud o propagador bárbaro de uma nova misoginia, os revisionistas comparam Freud e seu método, a psicanálise, a uma monstruosa opressão: colonização abusiva das crianças pelos adultos, dominação das mulheres histéricas por médicos violentadores, mentiras e falsificações de um fundador guru sempre pronto a devorar novas vítimas.
Associados às feministas radicais, os revisionistas tornaram-se a seguir aliados de todos os inimigos tradicionais da psicanálise: religiosos fanáticos assustados pelo velho fantasma de uma sexualidade desenfreada, cientistas reacionários com aversão a qualquer explicação psíquica sobre o homem, sóciobiólogos conservadores que pregam uma representação imobilista do corpus social. A essa coalizão de interesses associam-se teóricos do conhecimento que recusam qualquer idéia de inconsciente, "pós-desconstrutivistas" que distorceram abusivamente as teses de Jacques Derrida em proveito do comunitarismo e, por fim, filósofos da ciência que se valem de Karl Popper de maneira simplista a fim de expulsar a psicanálise para fora do domínio da racionalidade. Ao ouvi-los todos soltar gritos de terror contra a descoberta freudiana, podemos imaginar que talvez ela ainda tenha um futuro pela frente. Sim, porque foi pela resistência que ela sempre se opôs a eles, fora do seu campo e no seu próprio movimento, foi pela resistência que ela acabou por impor à sociedade algumas de suas virtudes socráticas e civilizadoras.
O mais grave nesse caso foi a atitude adotada pela direção da Biblioteca do Congresso. Como uma instituição com tanto prestígio pôde ceder à estupidez desses intelectuais tão desnorteados a ponto de renunciar ao exercício de seu direito mais fundamental: a liberdade de expressão? Esperemos que não se trate de um sinal de déficit da democracia.
Que tal, para a próxima exposição, a Biblioteca pensar em tornar "sexualmente corretos" os manuscritos de Freud depositados em seu acervo? Assim ela poderia mostrá-los abertamente, sem correr o risco de ofender o olhar da nova América puritana.

Tradução de LUCIANA ARTACHO PENNA

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