São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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não saia de casa

CAIO TÚLIO COSTA

Muito preocupado com o aumento de assaltos a cidadãos quando retiram dinheiro de caixas eletrônicos, um delegado em São Paulo deu a sugestão exata para evitar esta violência: ninguém saia de casa com o cartão do banco. E completou: use-o somente quando for ao banco.
Se tivesse mais tempo para aprofundar o assunto, ele quem sabe tivesse a idéia de sugerir aos bancos que fechem todos os caixas 24 horas. Melhor ainda: por que não fechar todos os bancos já que estes também são vítimas constantes de perigosos assaltos?
A belíssima idéia da autoridade policial remete a outras providências bastante simples para os brasileiros com problemas de segurança, trânsito, saúde, consumo etc. e tal. Sempre na mesma linha de raciocínio:
Para evitar congestionamentos no trânsito em São Paulo seria conveniente não sair de casa no seu próprio carro, táxi ou de ônibus.
Se a pessoa não tiver carro impede também assaltos ao mesmo. Duas chateações solucionadas com uma única providência: de engarrafamentos e de segurança.
Para contornar problemas de saúde é facílimo: basta não ficar doente.
Para evitar acidentes provocados por terceiros e que possam levar a uma quebra de braço, por exemplo, é mais difícil. O mesmo delegado poderia ter uma idéia imaginosa do tipo "transforme-se num ermitão, more numa caverna segura e evite qualquer contato com o ser humano e com a natureza exterior".
Outro problema comum no Brasil é o da compra de produtos que não funcionam como deveriam. Fraldas, por exemplo. Elas costumam não absorver como deveriam o pipi dos bebês. Neste caso, não use fralda no seu bebê. Libere-o para fazer pipi livremente, algo bem natural.
Se o problema for um serviço público, como energia elétrica, o melhor remédio é não ter luz em casa. Isto porque a Eletropaulo costuma cortar a energia sem avisar, principalmente nos domingos, e quando você liga para lá, depois de esperar muito tempo na linha, fica informado de que a rede está em manutenção e essa informação foi publicada pela imprensa. "Sai na Gazeta Esportiva", diz sempre o atencioso funcionário. Pois suspendendo o serviço público de energia você rompe de vez com o problema da manutenção ou das inevitáveis quedas por culpa dos temporais.
Já que estamos na época de inundações, como evitá-las? A primeira providência, simples, é morar no alto dos morros. A segunda, também fácil, é não sair de casa no período de inundações -esta última só funciona se você tomou a primeira providência: morar no alto do morro.
Ironias à parte, o que me revolta é ouvir autoridades -como esse delegado- transferindo responsabilidades e dando sugestões que não combinam com a idéia de cidadania. É verdade que o aparato do Estado está cada vez mais impotente para resolver os desafios de uma sociedade tão desigual como a nossa. Tal impotência se revela nesta sugestão inócua, cômoda e intelectualmente agressiva do delegado.
O mais triste é a conclusão de que um país onde autoridades dão declarações assim realmente não é sério.

Ilustração: "Trouxa" (1969) Artur Alípio Barrio de Souza Lopes

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