São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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ripa na chulipa! pimba na gorduchinha!

texto Armando Antenore

ARMANDO ANTENORE
FOTO BOB WOLFENSON

a segunda vida de Osmar Santos
Faz um ano e 36 dias. Quando deixou o centro cirúrgico do hospital Albert Einstein (SP), Osmar Santos estava em coma e tinha o cérebro 5% menor. Perdera parte da massa encefálica num acidente de carro entre as cidades paulistas de Marília e Birigui.
A equipe médica que o operou, comandada pelo neurocirurgião Jorge Roberto Pagura, sabia que o locutor esportivo corria o risco de permanecer inconsciente por muito tempo -talvez meses, talvez mais.
Caso despertasse logo, um futuro igualmente agônico poderia aguardá-lo. "Em cada 100 pacientes com lesões cerebrais como a de Osmar, 60 não resistem às intervenções cirúrgicas e morrem", contabiliza Pagura. "Dos 40 que sobrevivem, praticamente todos passam o resto da vida em cadeira de rodas, sem falar nem escrever e mergulhados numa profunda confusão mental."
Pois, então, Osmar Aparecido dos Santos, 46 anos, o locutor das Diretas, "o pai da matéria", é quase um milagre. Já consegue andar e até subir escadas. Dá passos ainda curtos, mas vigorosos, com auxílio de um aparelho ortopédico na perna direita. Também fala e escreve algumas palavras -não raro, frases inteiras. Joga partidas de damas. Frequenta estádios de futebol, restaurantes, teatros e casas noturnas. Faz contas de somar e pratica natação.
"Nossos prognósticos mais otimistas indicavam que, caso saísse da cadeira de rodas, Osmar só iria se manter ereto, sem caminhar, um ano depois do acidente. Ele antecipou este prazo em oito meses", afirma o clínico geral Nelson Akamine, que acompanhou o radialista na UTI do Einstein.
Humildade
Nenhum dos profissionais que tratam do locutor -médicos, fisioterapeutas, enfermeiros, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogas- sabe precisar o porquê da melhora. Todos, porém, destacam o poder curativo de três características que Osmar demonstra ter de sobra: a perseverança, o bom humor e a humildade para aceitar as limitações que o acidente lhe impôs (nunca, desde que bateu o carro, o radialista recusou ajuda ou manifestou vergonha de aparecer em público).
Outro ponto que o favorece é o incansável apoio familiar -principalmente da mulher, Rosamaria, e dos irmãos, Oscar Ulisses, Odinei Edson e Osório Roberto.
"O cérebro humano guarda muitos mistérios", diz Pagura, que também chefia o pronto-socorro neurocirúrgico do GP Brasil de Fórmula 1. "Não temos condições de prever o quanto Osmar ainda pode evoluir. Se continuar neste ritmo, talvez volte a trabalhar como jornalista." E como locutor esportivo? "É difícil."
Caminhão boiadeiro
A "via crucis" de Osmar Santos começou no dia 22 de dezembro de 1994. Ele estava em Marília, onde pretendia festejar o Natal com os pais, o ex-lavrador Romeu e a dona-de-casa Clarice.
O locutor conhece bem a cidade, localizada no noroeste paulista, a 443 km da capital. Foi lá que Osmar -natural de Osvaldo Cruz (SP)- passou parte da adolescência. E foi pertinho de lá, em Birigui, que adquiriu, com quatro sócios, uma concessionária da Volkswagen, a Birivel.
No dia 23, os funcionários da empresa participariam de um almoço de confraternização. Convidado, o radialista confirmou presença. Pensou em viajar para Birigui na manhã do próprio dia 23, mas mudou de idéia e pegou a rodovia Transbrasiliana (BR-153) na noite de 22 de dezembro.
Tinha uns 170 km pela frente. Sozinho, embaixo de chuva, guiava uma Mercedes-Benz preta, modelo 220 C, ano 93, que comprara na semana anterior. Às 21h10, próximo de Getulina, um caminhão boiadeiro, carregado, manobrava irregularmente e invadiu a pista em que Osmar trafegava.
A Mercedes não conseguiu frear. Bateu atrás do caminhão, na quina da carroceria -que quebrou apenas o vidro dianteiro do carro, o bastante para atingir a cabeça do radialista.
A estrutura da Mercedes ficou intacta.
Bola de Basquete
A pancada desfigurou Osmar. O Instituto de Criminalística de Lins, que fez a perícia do acidente, não apurou a velocidade do carro no momento da batida. O impacto, porém, teve força para afundar o crânio do radialista entre a orelha e o olho esquerdos.
Os ossos estilhaçados alcançaram o cérebro e perfuraram dois ramos de uma importante artéria, a cerebral média. Osmar entrou em coma imediatamente.
"A cabeça de meu irmão inchou tanto que parecia uma bola de basquete", relembra Oscar Ulisses, 38.
Com o rompimento da artéria, o radialista perdeu quase 50% (mais ou menos três litros) do sangue corpóreo. Parte da massa encefálica extravasou pela fratura craniana.
A lesão provocou em Osmar uma "hemiplegia proporcional à direita". Ou seja: a pancada comprometeu uma área do cérebro que tem extensão de aproximadamente sete centímetros e que controla os movimentos voluntários de todo o lado direito do corpo.
É desta estratégica região cerebral -conhecida como fronto-temporal esquerda- que partem os estímulos nervosos necessários para mover o ombro, o braço, a mão, a perna e o pé direitos.
Quando saiu do coma, portanto, o locutor só mexia a metade esquerda do corpo. Em consequência, não tinha controle do tronco. Não podia sentar nem ficar de pé. Deitado, era incapaz de se virar. Encontrava dificuldade até para expandir o peito enquanto respirava.
Sem comunicação
Ironicamente, a região fronto-temporal esquerda também responde pelo maior dom que Osmar possuía: a capacidade de se comunicar. "Sabe-se lá por que, o destino mirou o ponto do cérebro mais precioso para um radialista", afirma Pagura.
Comunicar-se, no caso, significa:
1) Expressar-se verbalmente ou por gestos.
2) Compreender o que os outros falam ou fazem.
3) Reconhecer ambientes e pessoas.
Nas primeiras semanas depois do acidente, o locutor não conseguia realizar nada disso. Preservara dentro de si o sentido dos gestos e das palavras. Mas não achava nem os gestos nem as palavras quando precisava expressar algo.
Por exemplo: caso ficasse diante de um televisor, Osmar sabia do que se tratava -conhecia os canais e os botões de controle. Não encontrava, no entanto, a palavra para designar televisor.
O radialista não conseguia, ainda, fixar a atenção em seus interlocutores, estivessem eles falando ou gesticulando. Era principalmente por causa desta incapacidade que Osmar não compreendia o que se passava à sua volta.
O fato de não reconhecer pessoas ou ambientes se relacionava à dificuldade do locutor com as palavras. Para identificar tudo que o cerca, o ser humano lança mão de inúmeros recursos -a expressão verbal é, talvez, o mais importante. Se alguém não pode se comunicar por meio de palavras, automaticamente enfrenta problemas com o reconhecimento do mundo.
Também em decorrência da lesão no cérebro, Osmar perdeu parte da motricidade bucal. Não conseguia mastigar ou engolir, nem manter os alimentos sob controle dentro da boca.
Por que com ele?
"Pretendíamos passar o Ano Novo em Nova York. Marcamos a viagem para 27 de dezembro. No dia 22, o Osmar se despediu de mim com um beijo. Respondi: até amanhã -como sempre. Não pressenti coisa alguma. Não havia nada de diferente. Ele costumava dirigir à noite, sabia guiar na chuva. Nunca imaginei que pudesse se acidentar", conta Rosamaria Pardini de Sá dos Santos, 36, mulher do locutor há 14 anos.
"Levávamos uma vida bárbara, gostosa -jantávamos fora quase todos os dias, dançávamos, nos divertíamos muito. De repente, deu uma guinada de 500 graus. No começo, me perguntava: por que com ele, por que com o meu marido? Depois, fui mudando a pergunta: por que não com ele, se tanta gente tem problemas? Ninguém é melhor do que ninguém. Hoje, não procuro mais explicações. Aconteceu e pronto."
Garçons
No momento do acidente, um técnico em eletrônica de Marília, Márcio dos Santos, passava pela BR-153. O rapaz tirou Osmar da Mercedes e o levou para a Santa Casa de Lins.
O locutor sofreu, então, uma operação de emergência que durou quase quatro horas. Na madrugada do dia 23, um jatinho da Amil Resgate Saúde transferiu o paciente para o hospital Albert Einstein. Foram mais seis horas de cirurgia.
O radialista permaneceu em coma por duas semanas. No dia 12 de janeiro, saiu da UTI, mas só teve alta hospitalar um mês e meio depois.
Em casa ou no Einstein, Osmar recebeu visita de muita gente famosa. A lista inclui políticos (o ministro José Serra e o presidente FHC), cantores (Milton Nascimento, Ronnie Von, Jorge Ben Jor), atores (Irene Ravache, Kito Junqueira), jornalistas (Silvia Poppovic, Carlos Nascimento), apresentadores (Hebe Camargo, Serginho Groisman, Fausto Silva), atletas (Hortência, Zetti) e técnicos de futebol (Carlos Alberto Silva, Candinho).
Centenas de fãs mandaram orações, santinhos e cartas de apoio para o locutor. Logo depois da batida, um menino baiano de 8 anos escreveu dizendo que só iria pedir um presente de Natal: a recuperação do radialista.
Como sempre gostou de restaurantes, Osmar conhece dezenas de garçons, que costumava homenagear durante as transmissões esportivas. Uma legião deles fez questão de vê-lo no hospital.
Desde que saiu do centro cirúrgico (e mesmo quando estava em coma), o radialista tenta reverter a paralisia do corpo com sessões diárias de fisioterapia. Cada uma dura entre 60 e 90 minutos.
Duas vezes por semana, se exercita na piscina sob orientação da hidroterapeuta Rita Helena Labronici.
Transpirar de medo
Os progressos são lentos, mas decisivos. Atualmente, o locutor já mexe o ombro e o quadril direitos. Consegue, assim, se sustentar em pé e andar devagar. Dentro d'água, é capaz de boiar e mergulhar (antes do acidente, nadava todos os estilos, com exceção do borboleta).
"Osmar nunca rejeitou nenhum exercício", declara a fisioterapeuta Fátima Cristina Martorano Gobbi. "Às vezes, diante de um movimento mais difícil, que exige equilíbrio sobre a perna direita, ele chega a transpirar de medo, mas não recua."
O radialista também conta com o apoio da terapeuta ocupacional Cecilia Biesemeyer. Ela o ensina como tomar banho, se vestir, escovar os dentes e realizar outras atividades cotidianas sem pedir ajuda e sem desprezar a metade paralisada do corpo.
Para abrir um pote, por exemplo, o ideal é que Osmar o apóie na mão direita (ainda imóvel) e gire a tampa de rosca com a esquerda. "Desta maneira", explica Cecilia, "o locutor vai estimulando a reabilitação do membro que não se movimenta. Caso tentasse fazer tudo só com a mão esquerda, poderia até conseguir, mas estaria retardando a recuperação da direita."
Autógrafo
No terreno da comunicação, os avanços do radialista se devem às fonoaudiólogas Clara Hori e Wânia Secaf, que o encontram diariamente. Há oito meses, Osmar levava uma hora para relatar o que costuma comer de manhã: bolo, suco, pão, queijo, mamão, melão e café. Hoje, em 40 minutos, conta tudo o que fez no fim-de-semana. As frases, porém, ainda são curtas. E o vocabulário, limitado.
O radialista também consegue escrever o nome de amigos, familiares e restaurantes. Quando lhe pedem, dá autógrafos. Assina, com a letra um tanto trêmula, "O. Santos" -e não mais "Osmar Santos".
Diante de um texto, reconhece o significado de palavras suficientes para lhe dar uma idéia do assunto em questão. Compreende quase tudo que ocorre à sua volta -tanto que já participa de reuniões no departamento de esportes da rádio Globo, em São Paulo, onde trabalhava antes da batida.
Quem paga a conta?
"Osmar nunca teve muito tempo para se dedicar à família. Era ótimo pai, mas às vezes ficava dois dias sem ver os filhos, por causa dos compromissos profissionais. Agora, está mais presente, mais carinhoso. Vive abraçando e beijando as crianças", compara Rosamaria.
A filha caçula do casal, Lívia, 7, aceitou melhor o acidente. O filho mais velho, Victor, 9, chegou a se revoltar. "Um dia, me perguntou: mãe, você passou a vida inteira dizendo que Deus é legal. Então, por que Ele fez isso com meu pai?"
O surpreendente bom humor de Osmar ajudou a amenizar o clima doméstico. Hoje, quando a família se reúne em restaurantes, Oscar Ulisses ou Odinei Edson sempre puxam a brincadeira:
- Quem manda aqui?
- Eu, responde o locutor.
- Quem é famoso?
- Eu.
- Quem é inteligente?
- Eu.
- Quem é gostoso?
- Eu.
- Quem paga a conta?
- Oscar.

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