São Paulo, segunda-feira, 29 de janeiro de 1996
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Bagatela é muito ou pouco?

JOSUÉ MACHADO

O que quer dizer "bagatela"? O trecho de uma reportagem sobre o Banco Econômico parece confundir um pouco o sentido dessa palavra: "A equipe do Banco Central (...) indica que, nos últimos anos, Calmon de Sá pode ter enviado para fora do Brasil a bagatela de US$ 400 milhões".
Estaria o amigo redator considerando que US$ 400 milhões é muito ou pouco dinheiro? Estaria sendo irônico, como não se deve ser no texto noticioso para não confundir o pobre leitor? Seria demais para o leitor, já tão bem-tratado (com hífen) pelos governantes e banqueiros que o Todo-Poderoso houve por bem lhe dar como cruz adicional.
Para uma operação bancária fraudulenta, US$ 400 milhões parece ser muita grana, embora não o seja para alguns figurões por aqui, no governo ou fora dele. Por que então usar a palavra "bagatela" ligada a essa bufunfona? Será que o redator ganha tão bem que pode considerar US$ 400 milhões uma bagatela? Quero um emprego assim.
Só pode ter sido gracinha dele, claro, embora amarga, considerado o vulto e a seriedade do assalto.
O embaixador Júlio César dos Santos, que chorou buá, buá, no inquérito feito no Congresso a respeito da grampeação sivanesca, disse na ligação ao "comandante" José Afonso Assumpção, da Líder e da Raytheon, que US$ 250 milhões são "uma merda". Bagatela? Pelo jeitão da coisa estão ambos bem de vida. Buá, buá.
A palavra "bagatela" é sinônimo de ninharia, coisa de pouco valor. Do italiano "bagattella", talvez de "baca", baga, e o sufixo diminutivo "ella". Baguinha, portanto. Essa é uma hipótese. Outra, a de que deriva do árabe "baguátil", coisa insignificante.
Ocorre que começaram a usar "bagatela" com ironia, com sentido obviamente contrário ao dela, e, então, de gracinha em gracinha, ela aparentemente passou a significar coisa de grande valor para muitas pessoas.
O que fazer? Ler três páginas do dicionário de manhã, à tarde e à noite como castigo. E agradecer à Providência Divina o encaminhamento tão bom para todos que costuma dar no Brasil aos pequenos deslizes da administração bancária e oficial.
Buá, buá, buá!
Chutar por sobre?
Bater ou chutar "por sobre" o gol, como proclamam os narradores de futebol, é coisa que se diga sem ofensa à amada língua?
Num dia desses, Joelmir Beting, que adora metáforas e escreve bem, escreveu a propósito do festejado socorro do governo aos bancos que "os estressados correntistas do Banco Econômico da Bahia, o indestrutível, vão poder sacar mais R$ 15 mil por sobre os R$ 5.000 anteriormente protegidos. Bingo." Sim, escreveu "por sobre" e ainda tascou um pouco irônico "bingo".
Estranho o "por sobre"? Pode ser. Juca Kfouri, desta Folha, um dos raros bons cronistas esportivos que denunciam maracutaias dos picaretas do esporte, considera redundante a expressão "por sobre", composta de duas preposições e utilizada pelos narradores de futebol. "Por que não chutar apenas 'sobre' o gol, quer dizer, por cima dele, já que a pontaria é ruim ou o gol é pequeno?", estranha Juca. E estranha bem, porque essa locução é estranha mesmo.
No entanto, embora se diga que os locutores e narradores esportivos são distraídos e que às vezes maltratam um tanto a língua, o uso da locução prepositiva "por sobre" comprova que eles frequentam os clássicos, que a usaram muito. Assim como usaram "por entre", "por baixo", "por cima" e outras. Essa preposição dobrada faz parte da tradição da língua, ainda que pareça redundante, seja curiosa e de fato soe estranho, como um daqueles gestos expressivos do Edmundo, o espoleta.
É bom saber que, quando não estão narrando jogos, os locutores esportivos sacam da estante um legítimo Vieira, um Frei Luís e Sousa, um Machadão, quem sabe um Gregório de Matos boquirroto ou um Millôr, e circulam "por entre" as páginas deles com familiaridade insuspeitada, esmerando-se no domínio da língua. Mais respeito com eles.

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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