São Paulo, segunda-feira, 29 de janeiro de 1996
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O senador e a sereia

CAETANO LAGRASTA NETO

Senado (definição no "Aurélio"): "Na Roma antiga, assembléia de patrícios que, sob a república, constituía a magistratura suprema, e que foi mantida sob o império, mas com poderes bens diminuídos".
O Senado, enquanto casa do povo, submete-se à vontade deste, não só na função específica de legislar, mas, principalmente, na de discutir e apurar as propostas governativas do Executivo.
Torna-se, assim, o senador, magistrado, também com a função de instrutor de um processo decisório, ouvindo testemunhos e recolhendo pareceres para a rejeição ou aprovação de proposta do governo. Enquanto nesse mister, não pode repelir ou omitir -por iniciativa própria- a colheita de qualquer prova.
O paralelo com a função de juiz de direito é óbvia: jamais poderá este recusar prova ou testemunho sob a mera alegação de que adveio aquela ou esteja este revestido de opinião contrária ou desairosa ao Poder Judiciário. Constituir-se-ia essa circunstância em abuso de poder ou atitude arbitrária e suspeita, capaz de convulsionar a busca da verdade, galardão do acesso à Justiça. Qualquer depoimento, relevante, interessa primordialmente ao povo, independentemente da opinião que sobre ele possa ter quem exerça a presidência da Casa.
Assim, a atitude recente do senador Antônio Carlos Magalhães não consulta o interesse público quando, valendo-se de entrevista jornalística de testemunha, conturbou a sessão -convocada para ouvi-la- do Senado.
As palavras injuriosas da testemunha sempre poderão ser objeto de queixa e eventual apuração na esfera criminal, sem que por isso se veja impedida de depor quanto ao fato do qual tem inegável conhecimento. A se tornar habitual tal conduta, necessária e urgente será a criação de um controle externo das atividades senatoriais, capaz de impedir a concretização de um estado de arbítrio.
A partir desse breve incidente, pode o país entender a semelhança entre a atividade legislativa e a judicial, ao ser aquela exercida com os predicados desta. A ambas é imposta a responsabilidade inafastável de conduzir de maneira isenta e imparcial qualquer processo -todos-, mesmo aquele em que é parte algum de seus eventuais detratores.
O episódio assusta e não pode ser tratado levianamente, como qualquer escândalo da República (v. coluna do Cony, Folha de 17 de janeiro). Aqui não estão em jogo acusações de corrupção ou "grampo" etc., mas uma das garantias da cidadania e do próprio estado democrático de direito. A se admitir tal relaxamento, em breve estaremos novamente às voltas com o terror e a tortura ou com a morte pura e simples, enganados pelo mavioso canto de sereias.

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