São Paulo, segunda-feira, 29 de janeiro de 1996
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As notas do século 21

JOÃO SAYAD

Se pudéssemos dar uma nota para o desempenho do Brasil neste século, eu daria 6. Fomos melhores do que a média. Se considerarmos apenas os países abaixo do Equador, a nota seria melhor, 7,5. Não podemos dar nota ainda maior porque existem alguns países anglo-saxões no Hemisfério Sul, que foram muito bem. Exportamos café, borracha, derrubamos os coronéis da República Velha, acompanhamos bem o sucesso e o crescimento da economia mundial nos anos entre a Segunda Guerra e a crise do petróleo. Criamos um parque industrial diversificado e competitivo, a classe média cresceu, a distribuição de renda piorou, mas a mobilidade social é alta. Tivemos dois longos períodos de ditadura, a de Getúlio Vargas e a militar de 1964, mas entre os colegas do Hemisfério Sul, isso não afeta a média. Além disto, as modernizações aqui foram sempre feitas pelos conservadores revolucionários. Compare a nossa vida nestes 50 anos com a Europa Ocidental com nazismo, guerras e campos de concentração, com o Oriente atribulado com questões religiosas, a África primitiva perdida em guerras tribais e o resto da América Latina. Fomos bem e podemos ser aprovados, passar de ano, ou mudar de século -deixamos para trás o período glorioso de crescimento industrial, do trabalho organizado em sindicatos, de previdência social e de investimentos estatais importantes e bem-sucedidos. Mantivemos intactas muitas das nossas características -afinal de contas, temos uma identidade-, continuamos um país de ricos e pobres e, embora tenhamos feito grandes progressos rumo a democratização, ainda temos "donos do poder".
A questão agora é saber que nota vamos tirar nesta próxima era, pós-moderna e neoliberal, em que estamos entrando.
Mais uma vez vamos sair correndo atrás das "tendências modernas" e podemos prever os seguintes problemas: imensos ganhos de produtividade do trabalho acompanhado de crescimento absoluto de desemprego e da disparidade de renda. Cresce o mercado informal, o emprego em serviços pessoais como empregadas domésticas, entregadores e em áreas de lazer e comunicação. Diminuem as vagas para operários especializados ou não e para supervisores -gerentes e diretores. O desemprego e a exclusão poderiam ser atenuados pela tributação e gastos sociais do governo. Mas a mobilidade do capital internacional impede uma política tributária redistributiva. O governo poderia se financiar com dívida, mas as taxas de juros, principalmente para governo, são muito altas, e o capital nacional e internacional não gostam de governo, nesta era de liberdade do capital. Imaginar que possamos ter as "vantagens" do neoliberalismo e corrigir as suas desvantagens é uma ilusão. Tudo vem em um pacote -mais capital internacional, mais liberdade e menos Estado e gasto social; mais incentivo e eficiência e a competição, menos atenção e carinho com os que ficam para trás. O problema é grave para nós, porque somamos aos eternos desempregados ou trabalhadores que vivem de bico, outros contingentes de desempregados, agora formados, recém-formados e recém-terceirizados. Sob esse aspecto, mantemos nossa identidade -é mais uma etapa de modernização conservadora, como as outras, que deixará intocada a característica marcante do país, muito rico e muitos pobres.
O problema do capitalismo atual, onde parece que estamos entrando, pode ser compreendido usando um exemplo didático. Suponha um professor que para incentivar a sua classe, fixa como objetivo reprovar pelo menos 20% dos alunos. Dá as notas para todos normalmente, sem se preocupar com quantos vão ser reprovados. Depois, escolhe os 20% de alunos com nota mais baixa, e para esses dá menos do que nota 5. O sistema cria um superincentivo para os alunos. Mas para 20%, o esforço não adianta, pois serão reprovados. E ninguém dá "cola", pois ajudar um colega dificulta a própria vida. E cada ano que passa, torna-se mais difícil ser aprovado, pois os 20% inferiores em esforço ou capacidade são de qualidade cada vez melhor. No final de alguns anos, o professor terá como aluno apenas um Einstein muito esforçado, que, entretanto, será reprovado.
A competição por lucros cada vez maiores gera um resultado semelhante. O capital tenta economizar cada vez mais em mão-de-obra, para aumentar os lucros, destrói a sindicalização dos trabalhadores, insiste em uma política de controle do nível de emprego que impede o aproveitamento dos menos eficientes e produz cada vez mais a custos cada vez menores, o que é ótimo. O problema é que nessa "classe" de alunos, os aprovados produzem bens e serviços para serem consumidos pelos próprios alunos. Se muitos operários são economizados, começa a faltar demanda ou sobrar produtos. O capital produz então apenas para os operários aprovados produtos cada vez mais sofisticados. E se os aprovados trabalham cada vez mais, os reprovados não conseguem emprego, não ganham renda nem são aprovados. Os produtos se sofisticam, o incentivo para os melhores alunos ou melhores empresas são cada vez maiores, trabalham mais e melhor, e o número de desempregados aumenta. É fácil observar o que estou explicando. Pense no seu círculo de amigos e parentes. Quantos "deram certo"? Quantos estão bem empregados? O que fazer?
Fala-se no Brasil agora em um pacto de emprego. Da Índia, o presidente faz declarações sobre o nível de emprego no Brasil. Boa notícia de boas intenções. A resposta para o problema de desemprego é óbvia e aritmética. Precisamos trabalhar menos. A questão é saber como trabalhar menos em um mundo cheio de incentivos para trabalhar mais, ganhar mais e consumir mais. Como estudar menos em uma classe de "caxias"? Muitos anos se passarão antes de acharmos a respostas. O Brasil passou de ano no século passado. O início do próximo século que já começou é muito difícil. Não adianta apenas trabalhar e estudar mais. Temos que aguardar que o tempo e o sofrimento de tantos excluídos produzam crises, guerras e uma nova solução.

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