São Paulo, segunda-feira, 29 de janeiro de 1996
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O carteiro e o repórter encontram Borges

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Hollywood Rock. Meninas diante das câmeras.
"Viajamos do Rio, não dormimos e ainda não comemos. Mas está ótimo aqui. Superbom..."
Compreendo seu entusiasmo e desprezo pelo conforto. Há alguma coisa maior em jogo. Diante dela, o sofrimento físico existe mais para fixar essa hierarquia cujo topo é uma força que nos transfigura, nos torna idênticos ao melhor de nós mesmos. E nos faz crescer.
Desci a serra de Petrópolis para ver "O Carteiro e o Poeta", uma história do exílio de Neruda numa luminosa ilha da Itália. Enfrentei chuva e fila, mas estava feliz por antecipação.
Logo na primeira cena, o personagem principal, Mario, num casebre, na hora da sopa, confessa ao pai que tem enjôos quando sai no barco de pesca.
Vai, Carlos! Vai ser gauche na vida.
Esse verso de Drummond parece ter sido escrito para descrever Mario, que numa ilha de pescadores não suportava o balanço do mar. Como sobreviver?
A chegada de Neruda, que seria confinado na ilha, abriu um posto de trabalho. O correio queria alguém que entregasse as cartas de seu ilustre hóspede. Um carteiro particular.
O cartaz do emprego pedia um homem com bicicleta. Mario tinha uma e, certamente, aprendia com ela que o equilíbrio se ganha no movimento. Era curioso e se aproxima de Neruda fascinado com a simpatia que o poeta desperta nas mulheres. Nas conversas com Neruda, descobre o que é metáfora e decide que vai construir com ela uma ponte para seu amor.
Tenho muito medo das histórias que andam num trapézio sentimental. A qualquer instante podem cair no dramalhão e se rompe o encanto. Mas essa não, o encontro cósmico de um homem da ilha que enjoava no mar com um dos grandes poetas de nosso tempo iria marcar a vida dos dois, numa profunda amizade.
O que mais me recompensou ter descido a serra foi ver que iam sempre no essencial. Quando o tema era a crônica falta de água, com uma ou duas frases definiam aquilo como problema político e pronto: voltavam às suas metáforas.
Esteban Peicovich é um repórter que seguiu Borges e foi colhendo as frases, metáforas ou não, pelo caminho. Assim como o carteiro de Neruda ficou siderado pelo velho escritor e, agora, publica um livro com tudo o que ouviu -"Eu não sou importante", lhe dizia Borges. "Não mereço nem o céu nem o inferno. Melhor passar inadvertido. Imagine, depois de tudo isso, lá em cima, um juízo..."
O repórter também falava do Nobel com Borges, mas colhia o velho em momentos de solidão: "Não sei por que dizem que careço de sentimentos. Ou que em minha vida foram negadas certas experiências fundamentais. Suponho que se refiram ao amor. Pensam que não conheci o amor e se equivocam. Posso afirmar que vivi enamorado. O primeiro amor (ideal, é claro) de minha vida foi uma atriz, Ava Gardner. Costumava ver seus filmes duas vezes por dia. Logo que a sessão terminava, desejava a chegada do dia seguinte para voltar a vê-la. O amor exige provas. Provas sobrenaturais".
A amizade também. Neruda vai ao bar da ilha com Mario e lhe escreve uma íntima dedicatória na frente de Beatrice, a paixão do carteiro. Com isso Mario ganhou a coragem que faltava para se aproximar da amada. Nesse momento, carteiro e poeta já estavam tão íntimos que Mario lhe pergunta: "Como é que você quer ganhar o prêmio Nobel se não consegue fazer um poema para Beatrice?".
A relação do carteiro e do poeta é dramaticamente encerrada pela história política mundial.
Já a do repórter com Borges se prolonga por muito tempo, e nela há uma certa leveza: "Compromisso? Não. Não tenho mensagem. Não sou um evangelista", diz o velho Borges, arriscando-se a reflexões transcendentais.
"Gosto muito de uvas, de bananas também. Só que a banana não me parece uma fruta. Outra fruta que não me parece uma fruta é a maçã. Não entendo por que tem tanto prestígio."
O carteiro de Neruda jamais reclamou da falta de notícias do poeta que voltara para o Chile.
Quando viam que não chegavam cartas, as pessoas diziam "o pássaro come e depois vai embora". O carteiro tinha uma força enorme porque havia descoberto um Neruda, um poeta dentro dele.
E em vez de lamentar a ausência, saiu com um gravador para registrar os sons do mar, do vento e dos pássaros da ilha. Estava compondo sua carta para o mestre.
O repórter termina seu livro de citações dizendo que na verdade foi um livro que Borges deixou suspenso no ar para que alguém lhe roubasse: "E eu lhe roubei".
Mas quando examina o produto de seu roubo, Pecovich se defronta com a vingança da vítima: "Gostaria de seguir me consagrando à literatura porque esgotei todos os erros que um escritor pode cometer e creio que é a única maneira de se chegar à escritura. Esforcei-me por ser obscuro porque temia que me compreendessem e se dessem conta de toda a trivialidade do meu propósito."
"Hoje, à custa de ensaios e faltas, penso não conquistar uma certeza qualquer, mas evitar, certamente, os erros. Creio que ninguém pode ensinar nada a ninguém, embora, de certo modo, se aprende algo com quem se convive. Mas diria da literatura o que, sem dúvida, pode se dizer da alma: que cada um deve alcançar o seu próprio bem mas só pode fazê-lo na base de erros e faltas".
As menininhas diante da câmera no Hollywood Rock sabem disso. Viajam, não comem nem dormem. E acham superlegal. Não houve cachorro no mundo que impedisse o carteiro de Neruda de entregar sua mensagem de amor.

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