São Paulo, terça-feira, 30 de janeiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Barítono interpreta Schubert em coletânea

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Franz Schubert (1797-1828) é, por consenso, o maior compositor de "lieder" (canção) da história da música e Dietrich Fischer-Dieskau, também por consenso, o seu maior intérprete.
O lançamento desta coletânea, reunindo 102 gravações de canções de Schubert, realizadas entre 1951 e 1965, é uma boa notícia. Os seis CDs caem do céu, inesperados, e para serem perfeitos só precisavam ser mais baratos.
O "lied" é menos uma forma que um gênero, uma maneira de compor. Foi Schubert, na década de 1810, quem pela primeira vez elaborou a composição "romântica" desses poemas, combinando a canção tradicional, em estrofes, com o desenvolvimento livro dos motivos mundiais.
Não se trata apenas de um veículo para recitar musicalmente as palavras, à maneira das baladas e recitativos. Também não são árias de personagens. No "lied" quem fala é o compositor -mas fala, por assim dizer, para si mesmo.
Como a poesia lírica do romantismo, essas canções são menos para serem ouvidas do que entreouvidas. Os poemas ganham ali outra vida, descobrem-se num outro "tom" a poesia traduzida para um outro reino, quase uma poesia da poesia. E o cantor de "lieder" é a figura romântica por excelência; o poeta do poeta do poeta, num infinito de ecos e reflexões.
Fischer-Dieskau, que está para José Carreras ou Pavarotti como Becket para Stephen King, começou sua carreira, logo depois da Segunda Guerra, cantando as canções de Schubert.
Foi recebido, por toda a Europa, como um embaixador da nova "velha" Alemanha que agora ressurgia das cinzas. Aos 70 anos, ele é o doutor entre os cantores com uma carreira impecável de solista, cantor de câmara e de ópera, professor e musicólogo. (Juntamente com esta antologia, a EMI também traz um CD duplo de Fischer-Dieskau, o cantor de ópera, com excertos de Verdi, Wagner, Haendel e outros.)
O consenso sobre Fischer-Dieskau só não é absoluto porque Roland Barthes escreveu, em 1972, um artigo influente, sobre "O Grão da Voz", onde atacava a falta de "corpo" na interpretação excessivamente culta do cantor.
Para Barthes, Fischer-Dieskau era um cantor vocalmente sem marca, um intérprete abstrato da música, e um tradutor de significados comuns: um cantor da escola, da crítica, do gosto médio.
Mesmo deixando de lado o interesse militante de Barthes, neste que é um de seus ensaios mais tendenciosos, só se pode pensar que ele nunca escutou as gravações de Fischer-Dieskau da década de 50.
O que mais impressiona, nessas, é uma certa magreza, ou aspereza da interpretação. É uma modernidade em certos casos literalmente gritante. E é essa mesma modernidade que se pode entreouvir, mais tarde, no intérprete maduro. O "grão" da voz, no caso, é insubstituível e está na memória de todos nós.
Há, de fato, uma certa qualidade forçada, histriônica, de imitação sentimental, nas canções mais claramente dramáticas ou narrativas. É um fantasma que ronda a ópera e a música clássica em geral. Mas em seus melhores momentos -e são tantos- Fischer-Dieskau é um cantor diferenciado, precisamente pela ausência de teatro, pela expressão íntima, e a qualidade sonora de vacilações e colorações tão marcantes quanto o ritmo de uma frase de Barthes.
A ironia, hoje, é perceber o quanto de "cultura" há nos maneirismos de Barthes, e o quanto afinal ele não estava errado.
Os seis discos incluem muitas obras-primas conhecidas, como "Erlkõnig", "Nacht und Trãume" e "A Morte e a Donzela", além de canções extraídas do cielo "Schwanengesang" (mas não o ciclo completo, que como os outros dois, já foi lançado separadamente). Incluem ainda raridades como as longas canções narrativas (pré-lied) "Dio Rrgnohaft" o "Eisamkeit", cada uma com cerca de 20 minutos.
Dá uma certa pena acabar a resenha com uma nota negativa. Mas não é possível deixar de apontar uma certa dose de desleixo na edição. A canção número 10, no primeiro CD, destacada no texto de abertura, é um bom exemplo. Trata-se, sim, de uma "Serenata", mas não a com versos de Schlegel (reproduzidos no encarte). O que se escuta, de fato, é a outra, mais famosa, do ciclo "Schwagengesang" (que reaparece no terceiro CD, em outra gravação). Há muitos erros de digitação e, em alguns casos, diferenças entre o texto impresso e o cantado. Enfim: uma bagunça.
Mas tudo isto parece preciosismo, face à evidência das gravações. São sete horas de um dos repertórios mais espantosos do século passado.

Lançamento: Dietrich Fischer-Dieskau
Gravadora: EMI
Quanto: R$ 150 (a caixa com seis CDs, em média)

Texto Anterior: Goebel reconstrói o conceito de barroco
Próximo Texto: Internet sem dor
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.