São Paulo, terça-feira, 30 de janeiro de 1996
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Istambul: ajuste econômico ou transição social?

JORGE WILHEIM

Durante o processo preparatório do Habitat 2, a conferência de cúpula sobre o futuro dos assentamentos humanos, têm surgido duas interpretações sobre o contexto global em que está ocorrendo a urbanização da população mundial.
Uma linha de pensamento considera que, após a queda do Muro de Berlim, isto é, após o desaparecimento da União Soviética, o socialismo demonstrou-se uma teoria falida e a única "verdade" remanescente é a economia de mercado.
Por consequência a privatização, o enfraquecimento da regulação estatal, a substituição do planejamento governamental pela livre ação das chamadas leis do mercado, definem o caminho político a ser seguido pelas nações que desejarem ser modernas e usufruir das benesses do progresso material.
Segundo essa linha de pensamento, por vezes chamada de neoliberal, as atuais dificuldades, como o desemprego, as crescentes exclusões e tensões sociais e a carência de recursos financeiros por parte de governos, seriam episódicas e caracterizariam um período de ajuste da sociedade contemporânea, especialmente observável nos países do Leste Europeu, por estarem substituindo as instituições do período de economia centralizada pelas de uma economia de mercado.
Tenho defendido nos debates preparatórios uma outra linha, segundo a qual a humanidade já ingressou em um período de transição histórica, caracterizada por mudanças estruturais, por certo graduais e condicionadas por contextos nacionais e locais, do qual decorrerá, no próximo século, um novo contrato social, isto é, uma nova repartição de responsabilidades sociais.
Quais alguns dos sintomas de alterações tão radicais que nos permitam supor estar a humanidade "em transição"? Avanços tecnológicos estão alterando o modo de produção, a localização do trabalho, as relações e estruturas de emprego e as políticas de trocas comerciais. A consolidação das empresas transnacionais, hoje cerca de 37 mil, com suas trocas internacionais internas a seu próprio universo, geram um sistema produtivo próprio.
A repartição dos recursos financeiros disponíveis para investimentos tem se alterado: de 1990 a 1993 os recursos concentrados pelo mercado de capitais subiu de US$ 756 bilhões para US$ 42,3 trilhões, dinheiro esse absolutamente fora do controle de governos.
O poder estatal tem sido corroído por motivos diversos, a ponto de, sem recursos e desmoralizado, não mais ter, em numerosos países, o poder de representação e de contenção dos desideratos sociais. Assim, ninguém faz face às crescentes tensões urbanas provocadas pelas incertezas, desemprego, desorientação, agravadas ocasionalmente por migrações maciças e que revelam intolerância e violência, que desintegram o tecido social, levando-nos a uma espécie de neotribalismo urbano.
Esses sintomas são reconhecidos em países diversos: nos em desenvolvimento, nos em transição para o sistema de economia de mercado e nos altamente industrializados. E a violência urbana ocorre em Ruanda e Bósnia, assim como em Oklahoma e Paris, ressalvadas as diferenças episódicas.
Essas situações, que considero sintomas de mudança, são fortemente aceleradas pelo maior contingenciamento tecnológico do momento: a tecnologia de informatização. Ou melhor: a telemática, que alia o computador ao satélite. Muitas e variadas são as consequências positivas desse avanço, colocando à nossa disposição dados e informações, que eventualmente possam ser metabolizados em conhecimento.
Cinjo-me, contudo, neste breve artigo, a uma das decorrências do processo de informatização: a aceleração na tomada de decisões, certas ou erradas, e nas mudanças, em todos os processos. Em um primeiro momento essa tecnologia poderá levar a um distanciamento entre indivíduos e países "informatizados" e os "desinformados" (por não estarem suficientemente informatizados). Um novo tipo de penosa exclusão.
Há também sintomas positivos indicando estar a sociedade em um processo de transição. O transnacionalismo não se limita a empresas. Um grande número de cidades, organismos não-governamentais, centros de pesquisas e indivíduos têm passado a se relacionar além fronteiras por meio de redes de comunicação, da qual a Internet é o exemplo mais conhecido e bem-sucedido.
Soluções de problemas locais, como disposição de lixo, criação de empregos, atendimento de crianças de rua, sistemas periféricos de saúde, entre outros, têm sido encontradas por meio de engenhosas e criativas práticas em que novas parcerias são criadas entre setores públicos e privados, governos locais e organizações não-governamentais.
Novas instituições de relevância social são estabelecidas sem que possam ser categorizadas como "públicas" ou "privadas": universidades, centros de pesquisas, hospitais, fundações, cujo desempenho é claramente público, mas cuja gerência é privada e cujo financiamento é misto.
Pouco a pouco desenha-se uma nova repartição de atribuições. O período de transição será provavelmente penoso, caracterizado pelo preconceito de indivíduos, pelo egoísmo de grupos corporativistas, pelo conservadorismo de instituições e pela alienação e fúria de tresloucados, todos desorientados sobre o que está ocorrendo e inseguros sobre o que venha a ocorrer.
Mas é inegável que as sementes da sociedade futura já estão sendo lançadas e que, talvez já no primeiro quartel do século 21, a sociedade venha a ser diferente, baseada em outros valores humanos e numa economia que talvez nem se chame de "capitalista", mas de "socialista", embora bem distante da centralização e prepotência das experiências passadas.

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