São Paulo, quarta-feira, 31 de janeiro de 1996
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Arca de Noé

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - No final do regime militar, a mídia tomou posição contrária e ficou empolgada. No início foi diferente, ficou empolgada, mas a favor. Há um sexto sentido entre os profissionais da comunicação: sabem a hora de abandonar o navio e aderem a causas que antes combatiam. Em 1964, com exceção de meia dúzia de gatos pingados no "Correio da Manhã", a imprensa era favorável ao novo regime.
Com o desgaste dos militares, ela mudou de lado e passou a ser entusiasticamente contra. E houve o caso do ACM com o brigadeiro Délio Martins de Mattos. Os dois confraternizavam na mesma trincheira, mas o político viu mais longe do que o brigadeiro. As nuvens de incenso que saíram dos turíbulos da mídia fizeram Tancredo Neves convidar ACM para o ministério. Em certo sentido, foi o início do que hoje ainda vivemos.
Temos agora o caso do Vicentinho. Era um despreparado porque cobrava do governo os acordos que não eram cumpridos, como o dos petroleiros, não faz tanto tempo assim.
Subitamente, ele aparece em Brasília e embarca na arca de Noé que, ao contrário da outra, não navega nas águas de um dilúvio, mas provoca o próprio dilúvio. A mídia vai buscar nos armários os mesmos turíbulos e queima o mesmo incenso que queimou para ACM no caso do brigadeiro Délio de Mattos. É o herói do dia.
Assim como era inquestionável a malignidade do regime militar (em seu estágio terminal), assim também é inquestionável a excelência do atual governo em sua fase ainda inicial -a hipótese da reeleição acena para mais oito anos de FHC e a mídia não pode ficar tanto tempo fora da segurança e do conforto dessa arca de Noé onde cabem todos, macho e fêmea da mesma espécie.
Eu ia falar apenas do presidente da CUT, mas me perdi com essa história de ACM, Délio Mattos, Noé e dilúvio. Creio que Vicentinho reclamou quando o governo não cumpriu o acordo dos petroleiros. Agora, ele acredita no governo que ainda nem fez acordo algum. A mídia ficou afásica de tamanha emoção: nasceu um estadista.

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