São Paulo, quarta-feira, 31 de janeiro de 1996
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Reeleição: sim e agora

ANTONIO KANDIR

Ainda que por ora submerso, o tema da reeleição continua na agenda política. É normal que desperte paixões e interesses. Jamais uma mudança importante nas regras da competição política se fez "a frio", desvinculada de problemas candentes da ordem do dia.
Para ficar num só de muitos exemplos possíveis, a França jamais teria assistido à criação de um regime semipresidencial não fosse a instabilidade recorrente do regime parlamentar da 4ª República. Tampouco a mudança teria conseguido aprovação e implantação tão definitiva não houvesse um político da envergadura de De Gaulle para personalizá-la.
Não há, portanto, propostas de mudança institucional que sejam desinteressadas e desapaixonadas. Dizer o contrário é fazer demagogia tola. O que importa saber é se a mudança institucional se prende exclusivamente aos interesses deste ou daquele político, deste ou daquele agrupamento partidário, ou se responde a um desafio que defronta o país como um todo. Estou convencido de que a proposta de instituir-se a reeleição no Brasil enquadra-se nessa segunda categoria.
Em resumo, o desafio é consolidar um novo padrão de gestão nos vários níveis e esferas do Estado brasileiro. Esse novo padrão de gestão pressupõe a estabilidade econômica, implica mudanças de vários dispositivos legais, seja na Constituição ou na legislação dita infraconstitucional, mas não se esgota aí. Seu significado último está em afirmar o caráter público do Estado e sua capacidade financeira de responder a demandas, como limites intransponíveis da disputa política democrática.
Trata-se de promover ruptura profunda com um padrão histórico de competição política. O limite último a que chegou esse padrão, resultando no virtual colapso do Estado brasileiro, torna o desafio monumental, pois as ferramentas da reconstrução institucional não estão previamente à disposição, senão que têm de ser continuamente fabricadas e refabricadas ao longo do processo.
Em situações históricas dessa natureza é imensa a importância das lideranças. No caso do Brasil de hoje, o presidente Fernando Henrique, desde os tempos de ministro da Fazenda, tem desempenhado papel crucial na criação reiterada das condições de possibilidade dessa mudança histórica.
Não há, pois, nada de casuístico, tampouco de surpreendente, em que o tema da reeleição surja ligado à sua pessoa. Seria então inoportuno o momento para discutir-se o tema, já que há muito ainda a cumprir da agenda de reformas que está no Congresso? Esse é um argumento tão recorrente quanto equivocado.
Processos de reforma estrutural são processos que esbarram em resistências arraigadas, carregam boa dose de incerteza quanto a seus desdobramentos e demandam tempo para consolidar-se, gerando por algum tempo custos bastante ponderáveis.
São processos para cuja continuidade não basta haver apoio político episódico. É necessário haver perspectiva firme de sustentação política continuada. Quanto mais firme for essa perspectiva, maiores os incentivos a que os condutores das reformas persigam os seus propósitos, ainda que à custa de certo desgaste político momentâneo, e mais difíceis as condições para que os que se opõem às reformas emperrem-lhe o andamento, limitem seus efeitos e afirmem-se como alternativa ao processo de mudança.
Vale dizer, quanto mais firme a perspectiva de continuidade do processo, mais velozes e abrangentes serão as reformas, mais rápida e consistente a transição para uma ancoragem fiscal e monetária que permita combinar estabilidade de preços e altas taxas de crescimento econômico, e maiores as chances de firmar-se em definitivo um novo padrão de gestão do Estado brasileiro.
De modo inverso, quão maior a incerteza quanto à continuidade, mais lentas e tímidas as reformas, maiores os custos de manutenção da estabilidade e mais elevados os riscos de interrupção e retrocesso das mudanças estruturais.
O problema da impossibilidade de haver reeleição está justamente em introduzir incerteza adicional quanto à continuidade do processo de mudança, com todas as consequências negativas que se seguem. Vale notar que o problema não se limita à impossibilidade de reeleição do presidente da República.
Aliás, ele é ainda mais agudo no nível dos Estados. Pensem, por exemplo, no caso de governadores empenhados em resolver a crise aguda das finanças estaduais, os quais, ao contrário do presidente da República, não podem atribuir a si os bônus da estabilização dos preços, visto que essa política lhes foge à competência direta.
Os governadores são presas de um dilema típico do mandato de quatro anos sem direito à reeleição: perseverar nas medidas de austeridade necessárias como condição preliminar à implantação de um novo padrão de gestão do Estado, correndo o risco de se sacrificar politicamente, ou fazer um arremedo qualquer para minimizar o desgaste político e conseguir emplacar o sucessor.
O ponto a salientar não é que não possa haver mudança estrutural sem direito à reeleição. O ponto é que a norma constitucional que impede a reeleição tende a castigar o administrador empenhado em mudanças profundas e premiar o administrador que optar por alguma forma de arremedo.
É sob essa ótica que vale a pena discutir se não chegou a hora de rever o impedimento à reeleição. Estou convencido de que os males que essa norma pretende evitar são hoje menores do que os males que ela produz.
No passado havia boas razões para sustentar o impedimento à reeleição. Hoje a vigilância crescente da opinião pública sobre o Estado, fruto dos novos meios tecnológicos e da democratização da sociedade, permite que se controle o risco de uso da máquina sem necessidade de vedar o direito à reeleição (com exclusão prudente dos municípios de população inferior a 200 mil habitantes). Direito que não é só do chefe do Executivo pleitear mais um mandato, mas sobretudo direito do eleitor de decidir se vale a pena mantê-lo no poder.
Estamos em condições de conciliar a lisura do processo eleitoral com maior continuidade de métodos e propósitos na administração pública, marca das democracias amadurecidas e condição importante para que se acelere e consolide o processo de mudança estrutural no Brasil. A hora é agora, e não mais tarde.

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