São Paulo, terça-feira, 1 de outubro de 1996
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Burocratas do absurdo

RICARDO SEITENFUS

O crescimento do número de organizações internacionais fez proliferar a figura do funcionário internacional. Uma aura de respeitabilidade, favorecida pelo desconhecimento, envolve suas atividades.
Quem não recorda as inspeções regulares ao Brasil das missões dos técnicos do FMI? Seu aval era sinônimo de segurança e boa gestão da economia. O aluno mais assíduo e competente nas lições foi o México. Colheu como resultado a transferência de suas reservas petrolíferas para os Estados Unidos.
Com tanto sucesso, os conselheiros tornaram-se mais ousados. Não bastava o controle das contas públicas. Tornou-se indispensável dar a receita para alcançarmos o chamado bom governo. Privatizações, diminuição do Estado e corte nos gastos sociais constituem o tripé dessa nova fase da burocracia internacional.
O Bird (Banco Mundial), o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e instituições das Nações Unidas ligadas ao comércio e desenvolvimento espalham no mundo seus iluminados especialistas. Novamente a América Latina fornece um bom aluno. A Argentina curva-se perante todas as sugestões e dispõe de um exército de desempregados que perfazem 18% da população economicamente ativa.
O Brasil sempre tratou bem esses funcionários. Incontáveis vezes, arcou com suas despesas de viagem, abriu as portas do Estado e os recebeu como se autoridades fossem. Exemplo está no Rio Grande do Sul, onde o governador os acolhe no Palácio para ungir o Programa de Demissão Voluntária, ora apresentado como exemplo para o país. O fato de que certos demitidos, após embolsar polpudas indenizações, retornaram como cargos em comissão é certamente um fator secundário.
Assim, uma casta percorre o mundo impondo políticas, distribuindo avais e conselhos, isso quando não está encastelada nas capitais da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Autodenominados especialistas em desenvolvimento, são os maiores beneficiários da desorganização e ineficiência dos organismos internacionais. Verdadeiros burocratas do absurdo, muitos deles jamais demonstraram sua capacidade intelectual nas academias dos países de onde vieram, tampouco no meio acadêmico em que estão as organizações que representam.
Ocorre que, nos países desenvolvidos, tanto os governos quanto os intelectuais dimensionam corretamente a importância dos conselhos oriundos dos organismos internacionais. Sabe-se de antemão que se trata de um jogo de cartas marcadas.
Organismos de financiamento ao desenvolvimento, o Bird e o BID, que deveriam apenas analisar projetos, são hoje arautos do chamado bom governo. Bom governo para quem? O próprio Bird reconhece que menos de 10% dos seus recursos chegam ao destino previsto no projeto inicial.
Há pouco, esta Folha deu grande espaço a um economista do BID que agitou seus "papers", durante anos, na Organização Internacional do Trabalho. Mas o economista arroga-se o direito de lançar bombásticas e definitivas declarações sobre a universidade pública brasileira.
Os educadores, além de massacrados pelos salários aviltantes e as péssimas condições de trabalho, agora devem também suportar o acinte desses fornecedores de caução a governos medíocres.
Organismos internacionais não são neutros e não possuem a aura científica que ostentam. Ao contrário, as indicações para esses cargos não são feitas por mérito, mas sim por injunção política. Os documentos mais importantes são elaborados por colaboradores externos, invariavelmente das próprias universidades agredidas.
Finalmente, devemos nos interrogar sobre a atitude dos nossos governos, tão ciosos quando se trata de discutir a soberania nacional. Haverá maior ingerência nos assuntos internos brasileiros do que o imenso rosário de missões de aconselhamento que percorrem constantemente o país, a nos tratar como verdadeira republiqueta?

Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 48, doutor em relações internacionais pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra (Suíça), é professor titular de relações internacionais e coordenador do mestrado em integração latino-americana da Universidade Federal de Santa Maria (RS).

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