São Paulo, quarta-feira, 2 de outubro de 1996 |
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Demi Moore faz striptease para americano ver
MARCELO COELHO
Como todos os filmes de Hollywood, "Striptease" chega aqui carregado de uma máquina de propaganda violentíssima, algo como uma verdadeira invasão de discos-voadores. O filme se torna assunto durante uma semana, no máximo. Passado o impulso inicial, a gente se esquece de ir ver, e fica tudo por isso mesmo. Não fui ver "Independence Day", nem "Twister". Até que tive vontade. Mas se eu tivesse visto, já teria esquecido, o que prova que dá no mesmo, afinal, ver ou não ver um filme desses. Demi Moore fazendo strip! Uau! O Brasil importa essa sensação, essa polêmica, essa curiosidade, como se fosse um desses telefones descartáveis ou brinquedinhos coreanos que uma semana depois já estão quebrados. Não é que Demi Moore seja feia, ou que seu corpo não seja admirável. Mas vendo "Striptease", fiquei com a sensação de que havia algo errado em tudo aquilo. Demi Moore tem traços bonitos, só que enquadrados num rosto largo demais; o que pudesse ter de faceiro se aloja numa carroceria pesadona, como a dos velhos modelos GT fabricados em Detroit antes da crise do petróleo. É uma beleza automobilística, mais do que aeróbica. Seu corpo é notoriamente apresentado como um produto industrial. Plásticas, silicones, injeções eletrônicas e suspensões automáticas fizeram dessa moça um prodígio técnico, enquanto seu rostinho, como que solto e deslocado da megaestrutura protéica, tenta dar sinais de vida independente, ou seja, tenta interpretar um papel. Mas isso não é tudo. O prodígio industrial tem de dar mostras de esforço próprio, assim como todo herdeiro rico nos Estados Unidos é escoteiro, esportista ou trabalhador na juventude para merecer o que ganhará depois. Demi Moore tem então de exibir não apenas o silicone, mas os músculos que adquiriu em milhares de horas de academia. Merece, portanto, as plásticas e o silicone, já que sozinha se esfalfa nos aparelhos. Surge assim um corpo tipicamente americano, produto simultâneo de muito esforço e de milhões de dólares; de ética protestante e de espírito do capitalismo. O resultado tem algo de atraente, de ridículo, de homossexual e de T-bone steak. Atraente, porque Demi Moore é compacta e exuberante como um Big Mac; ridículo, porque é séria em seu papel feminino, como um travesti recém-convertido ao pentecostalismo; homossexual, porque suas coxas e nádegas seguem o modelo de um jogador de basquete negro da NBA; T-bone steak, porque finge ser um contato com a natureza, com o mundo rude da conquista do Oeste, com a palpitação da epopéia americana, num menu de restaurante ao alcance de todos. Não é por acaso que, em "Striptease", ela termine levando à loucura e à ruína um deputado republicano corrupto, vivido por Burt Reynolds. Trata-se de um americano típico, tal como nós, brasileiros, gostamos de imaginar: chapéu de cowboy, vulgaridade completa, certeza de que poderá comprar o que deseja. Burt Reynolds se apaixona pela stripteaser Demi Moore. Convida-a para uma noite num iate, a preço altíssimo. Usando cuidadosa peruca, julga-se sedutor. Só que, claro, Demi Moore é uma moça direita; hollywoodianamente direita. Seria o caso de ver aqui um grão de ironia e de autocrítica no filme. Pois o poder do dinheiro, a peruca, a vulgaridade de Burt Reynolds representariam, no fundo, aquilo que a própria Demi Moore representa. Imaginar que o grande interessado em Demi Moore é esse deputado imbecil não deixaria de ser uma mensagem ao público masculino: "você, que veio ao cinema por causa de Demi Moore, é um perfeito Burt Reynolds". Mas a ironia potencial é anulada por outro mecanismo, que a meu ver responde pela americanidade e pela perversão do filme. Em "Striptease", Demi Moore trabalha numa casa de espetáculos apenas para ganhar dinheiro e assim recuperar a guarda judicial de sua filhinha. Sim, Demi Moore é mãe virtuosa de uma menina de quatro ou cinco anos, a quem ama perdidamente. Não pensa em sexo; pensa na filha. Vai ao iate com Burt Reynolds porque isso significa dinheiro em caixa, para melhor cuidar da filha. Eis o ponto, creio, em que Demi Moore funciona como símbolo sexual nos Estados Unidos e não funciona tanto aqui. Ela é a mãe jovem, firme, puritana. É a mãe de Forrest Gump (Sally Field) lutando pelo filho. É a velha mãe de "Vinhas da Ira", de John Ford. É a mãe inatacável. Quando Demi Moore posou nua e grávida para a revista "Vanity Fair", há alguns anos, isso foi um escândalo. O escândalo foi importado bestamente ao Brasil, que já tinha visto muito tempo atrás a foto de Leila Diniz com seu barrigão. Só que Leila Diniz aparecia de forma improvisada, e não propriamente como objeto sexual naquela foto. Demi Moore tornou-se símbolo sexual depois de ter aparecido estudadamente grávida e pelada. No filme, ela faz o papel da mãe que tem um corpaço. Talvez o complexo edipiano tenha mais peso nos Estados Unidos do que no Brasil. No Brasil, ocorre o oposto: quanto mais Antonio Fagundes engorda e envelhece, mais ele é preferido pelas mulheres. É o paizão. Os homens não querem saber, aparentemente, da mãezona. Encantam-se por outra coisa --as adolescentes da hora, do gênero Cláudia Abreu ou Patrícia França; ou as Xuxas e Angélicas, que se prolongam na infantilidade; ou as viúvas nelsonrodriguianas, como Adriane Galisteu; ou as casadas nelsonrodriguianas, como Marisa Orth; ou as simples mulatas globeleza. Mesmo no gênero aeróbico e atlético, as assim chamadas musas do vôlei se separam de Demi Moore por uma aura de virgindade e adolescência. No papel de mãe, Demi Moore excita, numa vulgaridade intocável e edipiana, o público dos Estados Unidos; mas aqui, francamente, ainda conseguimos ser nacionalistas quanto a isso, apesar de tudo. Texto Anterior: Os retirados da semana Próximo Texto: "Antarctica" escolhe seus premiados Índice |
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