São Paulo, quarta-feira, 2 de outubro de 1996
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40 mil horas

MÁRIO AMATO

Em 1985, Jean Fourastié publicou o livro "Les 40.000 Heures". Suas previsões não só se confirmaram como foram ultrapassadas. Por isso, vale a pena voltar ao tema; 40 mil horas será a duração do trabalho desenvolvido pelo ser humano, ao longo da sua existência. São 30 horas semanais, em 35 anos de atividade, até a aposentadoria.
Quando eu comecei a trabalhar, há 65 anos, já existia lei trabalhista, mas poucos a cumpriam, porque os empregados estavam plenamente integrados à empresa. O empregado trabalhava horas seguidas e só tinha certeza da hora exata de entrada no serviço, da hora do almoço e da hora de retornar ao trabalho. A hora da saída era incerta. Férias assinávamos, sem pestanejar, como gozadas. Tudo isso, que hoje é considerado um absurdo, era compensado com boas gratificações em dinheiro, que chegavam a representar, não raro, no final do ano, valor variável entre três e 12 salários, quando não havia a obrigação legal do 13º salário.
Havia, como sempre houve, casos de abuso, mas as empresas que assim agiam tinham pouco futuro. Eu lembraria as casas de origem portuguesa (Barros & Cia., J. Moreira e dezenas de outras), nas quais o trabalhador entrava menor de idade, fazendo limpeza, dormindo no emprego e fazia carreira.
Quando estava devidamente preparado, se estabelecia por conta própria, com capital que lhe era cedido pela firma em que trabalhava. Poderia citar grandes empresários que são o resultado positivo dessa prática.
Quando os avanços sociais se transformaram em realidade, verificou-se um verdadeiro terrorismo. Muitos consideravam um absurdo. O mesmo aconteceu quando se pretendeu criar a semana de 40 horas de trabalho, horas extras pagas, férias de 30 dias, justificação de até cinco dias de faltas, atestados médicos, licença maternidade, indenização por demissões imotivadas, salário-família, vale transporte, vale refeição, auxílio desemprego.
Sabemos que a toda ação corresponde uma reação. Logo, as empresas começaram a se organizar para reduzir o número de empregados, fugir das áreas de influência do sindicalismo que buscava a cizânia entre capital e trabalho.
Atualmente, a situação do mundo e do Brasil, em particular, necessita de novo ordenamento, em que se destaquem como setores mais importantes a parceria entre empregadores e empregados, as relações humanas, a educação e a cultura como instrumentos que devem comandar as relações entre capital e trabalho, considerando que a modernidade que se persegue compreende a tecnologia, a informação, o meio ambiente como fatores essenciais à melhora da qualidade de vida da população. Para tanto, não vejo melhor alternativa do que a preconizada por Jean Fourastié em "As 40.000 Horas".
Imaginemos um cenário em que o jovem começa a trabalhar aos 18 ou 20 anos de idade. Nesse período, ele se formaria como ser humano e como cidadão, dominando os princípios básicos da moral e da ética, receberia educação no lar e ensino na escola. Esse jovem faria um estágio e ingressaria na atividade para a qual se preparou, começando então a cumprir as 40 mil horas, que se completariam após 35 anos de trabalho, quando então estaria com 55 anos, podendo se aposentar.
Após essas 40 mil horas de ininterrupta produção, salvo por doença ou gozo de férias, deixaria de ter direitos e trabalharia como autônomo e, mesmo que a perspectiva de vida, que hoje é de aproximadamente 65 anos, passasse para 80, 100 ou mesmo 120 anos de idade, conforme os cientistas já prevêem, aquele cidadão estaria com a sua vida perfeitamente equacionada.
Esse parece um cenário utópico. Mas talvez seja por ele ou por outro que o possa substituir que evitaremos a continuação do desemprego. No entanto uma indagação se faz necessária. Por exemplo, o que fariam os jovens nas horas em que não estivessem trabalhando ou estudando?
Ele teria de ter um lazer cientificamente direcionado, para o esporte, para a música, para a arte em geral, dando à sua formação cultural um sentido ético e moral. O lazer cientificamente direcionado lhe ensinaria o caminho da fraternidade, do respeito ao seu semelhante, ao meio ambiente e a si próprio.
Com isso, essas horas ociosas dificilmente seriam utilizadas para o consumo de drogas ou para a transformação do sexo em uma atividade compulsiva. Essa é uma previsão difícil de confirmar, mas deve ser encarada com otimismo, devendo-se evitar que o pessimismo de que estamos possuídos em relação ao desemprego seja válido para as previsões de Jean Fourastié.
A natureza não se move por saltos, mas é axiomático que, à medida que crescem a educação e a escolaridade a partir da pré-escola, o ser humano adquire consciência de sua responsabilidade social e evita cometer erros como a paternidade irresponsável, que é uma das causas que dificultam a obtenção de uma boa qualidade de vida.
Como é bom sonhar e conviver com idéias que buscam melhorar o mundo em que vivemos!

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