São Paulo, quarta-feira, 2 de outubro de 1996
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Os centenários de Piaget e Vygotsky

ESTHER PILLAR GROSSI

Aconteceram recentemente três encontros científicos em Genebra ( uíça) para festejar os centenários de Jean Piaget e de Vygotsky. Lá estiveram pesquisadores de todo o mundo e uma grande delegação brasileira.
Piaget e também Vygotsky, há mais de 50 anos, revolucionaram o mundo com idéias novas. Novíssimas, realmente. Entretanto suas aplicações não resultaram em efeitos tão nitidamente positivos. Sobretudo a escola, que seria o lugar por excelência de modificação a partir dessas novas idéias, não as aproveitou devidamente. Ela continua emperrada em suas velhas bases convencionais sem se dar conta de que a didática tem estatuto preciso e muito complexo e que ela resulta da contribuição de várias áreas do conhecimento.
Para mudar a escola há um longuíssimo percurso a trilhar. Certamente, temos já boas pedras alicerçantes a partir das descobertas de Piaget e de Vygotsky. Mas é necessário conjugá-las e não vê-las isoladamente. É ainda imperioso enriquecê-las com outras, como as de Wallon e de Paulo Freire, para que elas se tornem realmente úteis.
Com efeito, Piaget sozinho não tem produzido modificações animadoras. Pior ainda Vygotsky, se for considerado em si mesmo, sem vinculações de contexto, tomando como pano de fundo as idéias de Piaget. A partir desses eventos de Genebra, ninguém mais vai contrapô-los porque ficou escancarado para o presente e para o futuro que ambos os pensadores nos legaram idéias convergentes e complementares, as quais se necessitam mutuamente.
Porém, para além dos dois, é imprescindível agregar o valioso aporte de Henri Wallon, médico francês também contemporâneo dos primeiros. Piaget foi o grande explorador da ação como veículo da aprendizagem. Vygotsky foi especialmente o explorador da linguagem como também veículo especial do aprender. Mas faltava Wallon para declarar-nos "geneticamente sociais".
A explicitação dessa nossa dimensão definitória, isto é, de que só somos gente à medida em que constituímos dentro de nós um "outro" -um "socius", na genuína denominação de Wallon-, fruto da internalização de experiências grupais e que serve de ingrediente basilar para uma lúcida e nova visão do filhote do casal humano.
Nasce animal e se torna cada vez mais humano na proporção direta do enriquecimento deste "outro", que passa a habitá-lo a partir do aconchego, ou seja, do acolhimento que caracteriza a função materna, a qual só se efetiva associada à vigorosa força geradora da função paterna que nos obriga a desamalgamar-nos da simbiose daquele acolhimento básico, que só tem sentido temporariamente.
Para adequação da escola à sua função de lugar de aprendizagens complexas, há uma outra contribuição que não pode ficar de lado -a da antropologia da aprendizagem, a qual devemos a Paulo Freire.
O que mais se evidenciou em Genebra foi a distância entre os achados da psicologia da inteligência e sua eficaz utilização na escola. Aprender como ensinar, à luz dos novos paradigmas que nos oferecem as ciências da inteligência, é desafio para muita pesquisa e para muito investimento social e político. Por isso, é impossível priorizar o ensino fundamental sem associar intrinsecamente empenho igual na pesquisa universitária nessa área.
Sobretudo o Brasil, com índices estarrecedoramente baixos em rendimento escolar, necessita aproveitar os ensinamentos brilhantes desses congressos de Genebra para reconstruir sua escola. Sem isso, já estamos excluídos de antemão do convívio respeitoso e digno em âmbito internacional.
Sem uma inteligente reconstrução da escola, continuaremos também a acentuar, dentro de nossas próprias fronteiras, a mais criminosa apartação social, em que as imensas potencialidades de um contingente enorme de nossa população, os adolescentes e as crianças muito criativos, também os de nossas classes populares, ficam excluídos do acesso aos saberes complexos que só na escola podem ser construídos. Ficam excluídos do prazer que acompanha esse acesso e certamente usarão sua criatividade para se propiciarem prazer à custa de qualquer preço, em particular via transgressão das boas normas da sociabilidade.
Felizmente, há saídas teóricas para tais impasses, e há também enormes reservas de energia na massacrada categoria profissional dos professores. Que a sociedade se conscientize e conscientize dirigentes e governantes da urgência de um encaminhamento adequado desse setor da vida do país, o da reconstrução da escola na radicalidade das contribuições de Genebra.

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