São Paulo, domingo, 6 de outubro de 1996
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Parindo um Frankenstein...

ROBERTO CAMPOS

"O poder verdadeiramente único de um Banco Central é criar moeda e o poder de criar é também o poder de destruir" - Paul Volcker, presidente do Federal Reserve System, 1979-87
Numa dessas áridas e melancólicas tardes de Brasília (haverá outras?), confidenciou-me o general Golbery do Couto e Silva, após sua saída do governo Figueiredo, que seu maior arrependimento era ter criado o SNI, sem saber que estava fabricado um Frankenstein. Desviando-se de sua função de municiar governantes com análises objetivas, envolveu-se em intrigas palacianas, bisbilhotices da vida de políticos, confundindo reformismo com subversão e até mesmo metendo o bedelho em estratégia econômica, como no caso da asinina política de informática.
- Se isso lhe serve de consolo, disse-lhe eu, também colaborei na gestação de um Frankenstein -o Banco Central. Lutei denodadamente em 1964, ao lado do professor Otávio Bulhões, para a aprovação da Lei 4.595.
Essa lei era uma obra-prima de arrogância tecnocrática. O BC seria "independente", governado por um Conselho Monetário, com nove membros votantes, dos quais apenas três demissíveis pelo Executivo. Os outros teriam mandatos fixos, aprovados pelo Senado. Seria o "guardião da moeda", com a obrigação de "adaptar o volume de meios de pagamento às reais necessidades da economia nacional" e de "regular o valor interno da moeda, para tanto prevenindo ou corrigindo os surtos inflacionários ou deflacionários de origem interna ou externa" (sic!). Caber-lhe-ia também regular a taxa de câmbio visando ao "equilíbrio do balanço de pagamentos".
Passados 31 anos, qual a aderência do BC a esses nobres objetivos? Tornou-se uma casa de alta rotatividade, com 21 presidentes desde sua fundação. Em vez de "sheriff" da moeda transformou-se em devasso emissor. Entre 1970 e 1995, o Índice Geral de Preços da FGV ascendeu na magnitude astronômica de 394.536.109.367%, ou seja, 394 trilhões porcento! Quanto à preservação do equilíbrio do balanço de pagamentos, basta lembrar que só na década dos 80 proclamamos "duas moratórias", com vários esquemas descumpridos de reescalonamento de dívidas. E as desvalorizações cambiais se contam às dezenas!
Ao longo dos anos, vários defeitos se manifestaram: despotismo burocrático, absurdo micro-gerenciamento do sistema financeiro e "gestão temerária" da macro-economia. O BC se especializou em promover súbitas mudanças das regras do jogo de efeito desestabilizador. Só após o Plano Real, foram baixadas 290 circulares e 238 resoluções, cerca de uma por dia útil! O BC se tornou perigoso em suas intervenções para socorrer instituições financeiras, pois estas em geral pioram, passando da UTI para a antecâmara da morgue. É que o próprio BC tem sido um exemplo de "gestão temerária", não só da macro-economia, mas no tocante a seu próprio patrimônio. Este se tornou negativo em US$ 2,5 bilhões, pelo descasamento entre ativos e passivos, com a perda de 13 bilhões entre julho de 1994 e dezembro de 1995. O BC administrou passivamente a metodologia antiinflacionária usada no Plano Real: desindexação (bem sucedida, aliás), âncora cambial e taxas de juros confiscatórias. Na falta de uma política fiscal austera e/ou de privatização maciça, que atenuariam o ônus do ajuste, o impacto recessivo recaiu inteiramente sobre o setor privado. O setor público se mantém deficitário em cerca de 3% do PIB, equivalente aproximadamente ao déficit de balanço de pagamentos em conta corrente. Isso significa que tudo que conseguimos foi substituir o financiamento inflacionário interno do déficit pela poupança externa. O governo não diminuiu sua voracidade, falhando tanto no corte de gastos como na reestruturação fiscal. A alternativa lógica seria uma aceleração dramática das privatizações, visando a reduzir a dívida e os juros. Mas há incrível modorra nas privatizações de portos, telecomunicações e eletricidade, para não falarmos do petróleo!
Minhas inquietações sobre o desempenho de nosso Frankenstein foram exacerbadas pela leitura de um provocante trabalho do prof. Kurt Schuler, da Universidade John Hopkins, publicado pelo Institute of Economic Affairs, de Londres (mon. 52/96), sob o título "Deveriam os países em desenvolvimento ter bancos centrais?" Schuler conclui negativamente. Baseou-se numa análise histórica de 155 países classificados em três grupos: a) países industrializados com bancos centrais tradicionais; b) países em desenvolvimento que criaram bancos centrais; e c) países que usam "outros" sistemas monetários (juntas de conversão, institutos monetários, moeda emitida por bancos privados e "dolarização"). O estudo cobre dois períodos: 1951-70, em que as paridades do sistema de Bretton Woods substituíam o padrão ouro, e 1971-73, sob o regime de taxas flutuantes. As variáveis examinadas foram a taxa de crescimento econômico e a qualidade da moeda. A qualidade da moeda será tanto melhor quanto mais baixa for a inflação, mais irrestrita a conversibilidade, maior a estabilidade da taxa de câmbio e menos frequente o "confisco" do valor da moeda. Schuler conclui que o grupo de pior desempenho foi precisamente o dos países em desenvolvimento que, aderindo ao modismo que se alastrou após a Segunda Guerra, criaram bancos centrais. Os países industrializados tiveram melhor desempenho, ficando em segundo lugar o grupo dos países que, abstendo-se de criar bancos centrais, recorreram a sistemas mais rígidos, que limitam o poder discricionário de emissão de moeda e forçam os governos a manter equilíbrio fiscal.
O trabalho do prof. Schuler me faz lembrar a teoria do liberal austríaco Hayek sobre a "desnacionalização da moeda". Num panfleto, considerado à época (1976) escandaloso, Hayek propôs a abolição do monopólio governamental de emissão de moeda. Esse monopólio seria responsável por quatro defeitos: inflação, instabilidade, indisciplina nos gastos públicos e nacionalismo econômico. A cura seria o direito de emissão por agentes privados que, tendo de competir na obtenção da confiança pública, limitariam as emissões. A moeda mais sólida acabaria expulsando as moedas más e os governos ficariam sem capacidade de inflacionar a economia.
O BC parece estar perdendo uma das poucas qualidades que lograra preservar: a neutralidade política. Já se sabia que, em vista da infiltração da CUT em seus quadros, havia vazamentos do sigilo bancário em favor dos congressistas do PT, que os usavam para seu "denuncismo" nas CPIs. Agora, dois eventos revelam a influência peessedebista. Um é o tratamento extremamente leniente dado ao governador paulista Mário Covas, no caso do Banespa. Depois da intervenção do BC, o passivo subiu de 9 para 24 bilhões de reais, por três fatores: a) preconceitos estatizantes do governador, que obstaculiza quer a privatização quer a liquidação; b) a escalada dos juros; c) frouxidão gerencial dos interventores, que pouco fizeram para ajustar funcionalismo e agências ao mercado remanescente (melhor se houve o governador do Rio de Janeiro que, terceirizando a administração do Banerj a um banco privado, logrou reequilibrá-lo em menos de um ano).
O segundo evento foi o "vazamento" da notícia de uma investigação sobre operações financeiras na Prefeitura de São Paulo de dois anos atrás. A investigação não fora concluída; não há provas; os dados são incorretos e sua veiculação maliciosa às vésperas da eleição, longe de demonstrar diligência operacional, constituiu um crime eleitoral.
A atual situação é bizarra. Temos três bancos centrais -o BC, a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil- com uma divisão de tarefas: o BC socorre principalmente os bancos privados e os dois últimos, principalmente os bancos públicos e governos estaduais.
É portanto enorme a brecha entre os objetivos idealizados na legislação de 1964 e as realidades de hoje. Concebido como um anjo Gabriel, o BC virou um Frankenstein. Por isso, quando me perguntam se sou ou não a favor da "independência" do BC, minha resposta é de tipo existencial: será que o monstro deve existir?

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