São Paulo, domingo, 6 de outubro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O intercessor entre os deuses e os mortais

Leia texto do curador Jean-Hubert Martin sobre Picasso

JEAN-HUBERT MARTIN

Picasso e sua obra estão tão intimamente ligados ao século 20 e à sua história que não é tarefa simples separá-los. O fator tempo teve um papel primordial neste processo. Poderíamos crer que esta obra feita de contínuas idas e vindas somente poderia ser apreendida por meio de um método de análise iconográfica ou semiológica. Mas, na realidade, ela está tão intimamente ligada à biografia que qualquer abordagem não-cronológica torna-se difícil.
Este fato não surpreende, pois trata-se de um artista que por sua redefinição do espaço pictórico alinha-se no universo dos grandes pintores tidos como heróis desde o Renascimento. Aquele que se reivindica como o destruidor da tradição naturalista, que se impunha há quatro ou cinco séculos, não deixou de dar provas de sua capacidade de desenhar como Ingres e não parou de se comparar e rivalizar com os maiores, retomando à sua maneira o trabalho de Velázquez, Rembrandt, Delacroix e Manet. Este alinhamento deliberado no tempo da história da arte ensejou o comentário de que Picasso talvez fosse o último grande pintor desta longa tradição que ele se esmerou em destruir e sublimar ao mesmo tempo. Seu apego à técnica de pintura de cavalete o liga a esta prestigiosa tradição européia. A colagem, a "assemblage" e numerosos trabalhos efêmeros -e por isso pouco conhecidos e divulgados- o situam como o iniciador de muitos dos movimentos da arte contemporânea. Devemos reconhecer que, apesar das tentativas infrutíferas de atribuir-lhe o papel de precursor, quando não de pai, de uma pintura neo-expressionista que emergiu nos anos 80, ele continua a se manter como uma figura de enorme prestígio, porém sem descendentes diretos no plano pictórico.
Picasso casou com seu século, o qual lhe foi fiel. O casamento foi fértil à medida em que a arte deste século não pode ser pensada sem ele; também porque ele teve a inteligência de absorver todas as descobertas ou iniciativas de seus contemporâneos, pois parece que nada lhe escapou nesse formidável canteiro de exploração das possibilidades que é a arte do século 20. Uma ambiguidade natural para o artista que vive de paradoxos. Para superar o naturalismo e o espaço pictórico da perspectiva, era preciso ser destruidor e iconoclasta. A questão persiste: será que as distorções da figura humana, que muitas vezes chegam ao limite da caricatura, são a base de novo cânone estético? Ainda é cedo para responder. Há na imensa obra deste criador proteiforme tantas destruições -que parecerão sempre forçadas, mesmo se elas foram interpretadas durante muito tempo como um dos signos maiores da crise deste século- quanto construções -talvez mais felizes no que toca ao volume-, que, no âmbito da liberdade total do uso dos signos, elas postulam um novo sistema de interpretação, equivalente ao que descobrimos sem cessar nas artes denominadas primitivas. Isto faz com que seja possível que, enquanto pintor, ele surja como uma das últimas florações luxuriantes da pintura de cavalete.
Se isto for verdade, esta operação foi conduzida com plena consciência ou ao menos segundo um instinto de rara firmeza. O homem possuía um domínio ímpar das relações humanas e uma vontade de poder bem estruturada. Ilustração perfeita da figura do artista tal como ele se afirma a partir do século 19, ele se posiciona como um demiurgo cuja loucura criativa não conhece limites. Ele soma a esta imagem uma capacidade incomum para a publicidade e a gestão de seus próprios bens. Sua abordagem não lembrava em nada a dos pintores malditos e suas dramatizações. Picasso seguiu uma ascensão sem trégua pela trilha do poder.
As reportagens feitas no final de sua vida conseguiram quebrar as barreiras de sua vida particular, sempre muito bem protegida, com indiscrições autorizadas. Elas mostram um artista cindido entre sua paixão criativa e os prazeres da vida em família e do cotidiano. Tudo isto com base em uma visão comunista, com todas as aparências de uma vida simples sob um sol generoso e benfeitor. Esses estereótipos do artista próximo aos fatos da vida prosaica, terrena, quase camponesa, poderiam nos fazer esquecer a vida mundana dos anos 20. Picasso não hesitava então em exibir um certo luxo e se vangloriava de obter ganhos excepcionais. A ascensão não aconteceu por obra do acaso, e o artista soube gerenciar de maneira excepcional a carreira, recorrendo a escândalos quando necessário.
Os primórdios mostram o vigor e a determinação do artista. Ele se lança de corpo e alma na aventura da arte. Ele absorve tudo que existe de mais audacioso à sua volta, de Toulouse-Lautrec a Gauguin. Quanto a Toulouse-Lautrec, a fascinação era determinada pelas mulheres, sobretudo as prostitutas, apresentadas de maneira assustadora. Em relação a Gauguin, eram suas propostas de espaço inovadoras, o deslocamento do horizonte para a parte superior da tela e a construção pela cor. Nos famosos períodos rosa e azul, o desenho predomina com maestria e autoridade, elegante e harmonizado com tons suaves. Seus temas enfocam o casal e o abraço, assim como o circo. As carícias são delicadas, quase tímidas, repletas de abandono em um mundo de miséria.
Os sentimentos, contidos, parecem não conseguir brotar, e os dois protagonistas essenciais, o homem e a mulher, se entregam a um enfrentamento na busca de uma comunicação real que nunca é atingida. As reuniões familiares (já presentes em "La Fuite en Egypte" -A Fuga no Egito-, 1895) parecem muitas vezes apelos a um ideal nostálgico perseguido em vão em uma atmosfera de frustração.
Estas imagens, ao mesmo tempo tristes e suaves, obtiveram um grande sucesso. Para uma parcela do público, elas eclipsam o resto de sua obra. Este não é o menor dos paradoxos do destino de sua obra. Se ela tivesse se restringido a estes trabalhos de iniciante, sem dúvida Picasso seria considerado um artista menor. Os sentimentos, ou sua ausência, aparecem nestes trabalhos com uma emoção real; por outro lado, os desacertos e os preciosismos campeiam. As verdadeiras inovações pictóricas só surgirão mais tarde. As personagens do circo também, estranhas entre si, são prenúncios da capacidade do artista em prol dos travestimentos e disfarces mais radicais. O baile de máscaras está por começar. Durante 60 anos, ele manterá seu público sem fôlego, apresentando um desfile em que alterna os números mais variados e extravagantes.
Em abril de 1904, instala-se definitivamente em Paris, no Bateau Lavoir. Conhece poetas e pintores que terão um papel determinante em suas opções artísticas: Matisse, Apollinaire e Gertrude Stein. Nesta época liga-se a Fernande Olivier. Traz de uma viagem a Andorra, feita no verão de 1906, alguns trabalhos que assinalam o final do período rosa. Figuras femininas cobrem a superfície da tela ("Nu sur Fond Rouge" -Nu sobre Fundo Vermelho). As formas cheias e ressaltadas dão às pessoas aspectos esculturais, reforçados com a menção à Antiguidade por meio dos olhos cegos e sem pupilas. A desproporção dos corpos maciços marcam o abandono da preciosa elegância anterior. A grande cabeça que pende para a frente em "Nu sur Fond Rouge" resulta da exacerbação de um efeito de perspectiva. O contraste da cabeleira escura contra o fundo vermelho realçado sugere uma violência passional, já presente nas telas do período 1900/1901.
A tendência à simplificação das formas e a uma esquematização se acentua. Nos desenhos de 1906/07, o mesmo tipo de rosto lida com massas dominadas pela linha das extremidades do nariz que se estendem até os arcos superciliares. Corresponde à fase preparatória de "Les Demoiselles d'Avignon" (1907), que decreta a morte da pintura européia e de seu espaço ilusionista. Todos os elementos constitutivos da pintura tradicional são colocados em xeque e reavaliados segundo um novo cânone intuitivo que determina uma nova aventura. O espaço é construído a partir de planos de cores; não há mais profundidade nem fonte luminosa identificável. Os corpos são deslocados e desmembrados de acordo com uma nova gramática. A influência das artes denominadas primitivas, até então consideradas como monstruosas, imprimem sua marca definitivamente.
A questão da influência da arte negra continua em aberto. O debate progrediu com a grande exposição "Primitivismo do Século 20" (MoMA, Nova York, 1984), mas ainda não foi encerrado. Duas das prostitutas colocadas à direita das "Demoiselles d'Avignon", pois trata-se de uma cena de bordel -para acentuar o escândalo-, têm rostos com traços tão acentuados, que acreditamos estarem usando máscaras. A forma do nariz e das nervuras faciais elaboradas em uma série de desenhos nos remetem necessariamente a máscaras africanas.
Ao que parece, as máscaras correspondentes (dande da Costa do Marfim, região Etoumbi do Congo, ou mbuya dos Pende, no Zaire) não eram conhecidas em Paris em 1907. Os primeiros exemplares só chegariam alguns anos mais tarde. Podemos, no entanto, imaginar que alguma máscara deste tipo tenha chegado ao Mercado das Pulgas, por meio das aventuras de um missionário ou de um militar. A história da arte não pode dar conta, mediante a informação documental e dos arquivos que possui, de todos os objetos que circulavam na época. Também não nos ajuda em nada evocar uma eventual estatística em um caso de exceção imponderável. No entanto, esta hipótese não pode ser totalmente afastada.
Ao contrário, é o método dos estudos formalistas que deve ser questionado. Parece mais interessante tentar compreender o ponto de partida e o desenvolvimento da mecânica intelectual que levou à obra revolucionária de Picasso. Sabemos que visitou em 1907 o museu de etnografia do Trocadéro, em Paris, quando estavam sendo apresentados os troféus e testemunhos das campanhas coloniais. Panóplias estavam expostas ao lado de vitrinas repletas, em um amontoado que tinha por objetivo exibir o maior número possível de objetos.
André Malraux relatou uma declaração particularmente impressionante de Picasso depois desta visita: "Era horrível. O mercado das pulgas. O cheiro. Eu estava sozinho e queria ir embora. Mas não ia. Ficava, ficava. Compreendi que era importante: alguma coisa acontecia comigo, não? As máscaras, elas não eram esculturas como as outras. Não. Eram intercessores, passei a conhecer o termo a partir daquele momento. Contra tudo, contra os espíritos desconhecidos, ameaçadores. Olhava para os fetiches. E entendi, eu também era contra tudo. Também acredito que tudo é desconhecido, é inimigo (...) Os fetiches têm o mesmo objetivo. Era como se fossem armas. Para ajudar as pessoas a pararem de obedecer aos espíritos, a tornarem-se independentes. Ferramentas. Se damos uma forma às ferramentas, ficamos independentes. Os espíritos, o inconsciente (naquela época ainda não se falava muito dele), a emoção, é a mesma coisa. Entendi porque eu era pintor. Totalmente sozinho naquele museu horrível, com máscaras, bonecas peles-vermelhas, manequins empoeirados, as 'Demoiselles d'Avignon' devem ter chegado naquele dia, mas não em decorrência das formas, pois esta foi a minha primeira pintura de exorcismo".
O texto, graças às suas incoerências aparentes e a seu alogismo, é límpido. Foi redigido em 1937 por Malraux a partir de conversas com Picasso. Mesmo que ele incorpore algumas invenções de Malraux, corresponde a relatos recolhidos em conversas por outros interlocutores. Ele traz um certo número de informações primordiais sobre a atitude de Picasso e sobre seu estado de espírito naquele momento. Ele dá conta, antes de mais nada, de um fenômeno simultâneo de atração e de repulsão. Essa mistura de medo e atração, de ordem libidinosa, faz parte das contradições inerentes ao funcionamento psicológico, e é coerente com a explicação de Freud desenvolvida à mesma época.
Como já foi dito várias vezes, a obra de Picasso se encontra frequentemente com a psicanálise e fornece, em vários momentos, uma imagem perfeitamente coerente com ela. Ele utiliza uma série de termos, "magia, intercessores, espíritos", que comprovam até que ponto ele estava impressionado pela força destes fetiches e máscaras. Ele nega de modo acentuado, como fazia frequentemente, a influência formal destes objetos, mas insiste no essencial e no invisível. Ele não tinha dúvida de que fossem receptáculos de poderes tão poderosos quanto misteriosos. Sem dúvida, naquela época, eram ainda mais poderosos e misteriosos do que hoje.
Pertenciam a um mundo selvagem pontuado por rituais assustadores, onde os fantasmas dos sacrifícios humanos e a antropofagia se confundiam. Ele os interpreta como "ferramentas", instrumentos destinados a aniquilar ou neutralizar forças transcendentais e indomáveis. O amálgama se opera entre seus próprios medos e fantasmas e o papel de exorcismo que suas obras poderiam desempenhar para escapar a algumas das pulsões de morte. Esta é a chave essencial de sua obra.
A tela "Les Demoiselles d'Avignon", abandonada durante vários meses, foi acabada imediatamente após a visita ao museu de etnografia. A partir de então, o amor e a morte ritmarão implacavelmente o desenrolar de sua obra. Adotarão um caráter ao mesmo tempo obsessivo e monstruoso que não será mais desmentido.
Continua à pág. 5-9

Texto Anterior: 'Surviving Picasso' deve render indicação ao Oscar a Hopkins
Próximo Texto: O intercessor entre os deuses e os mortais
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.