São Paulo, domingo, 6 de outubro de 1996
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O intercessor entre os deuses e os mortais

A tela "Les Demoiselles d'Avignon", abandonada durante vários meses, foi acabada imediatamente após a visita ao museu de etnografia. A partir de então, o amor e a morte ritmarão implacavelmente o desenrolar de sua obra. Adotarão um caráter ao mesmo tempo obsessivo e monstruoso que não será mais desmentido.
Houve uma insistência exagerada na influência formal que as artes primitivas exerceram no nascimento do cubismo. É verdade que algumas soluções formais surgiram daí, como a metamorfose dos vazios em cheio, como no caso dos olhos que passaram a ser traduzidos por cilindros nas máscaras grebo. Tanto para Picasso quanto para as gerações que o seguiram, as manifestações plásticas e rituais das sociedades na tentativa de superar e vencer medos ancestrais -que todos compartilhamos- exerceram uma fascinação determinada que nunca é desmentida toda vez que ressurgem na arte contemporânea. Será difícil encontrarmos, a não ser em raríssimas exceções, um decalque perfeito de tal ou qual peça africana ou da Oceania. Ao contrário, ele soube impregnar-se do espírito das formas e apreendeu a extraordinária lição de liberdade no tratamento do corpo humano que estas artes propõem. Elas se afirmavam com muito mais força na medida em que se atribuía um uso social e ritual importante. Eram menos emanações de uma fantasia individual do que testemunhos impressionantes de comunidades inteiras exprimindo assim suas crenças sobre a vida e a morte.
Uma foto de 1908 mostra Picasso em seu ateliê em Bateau Lavoir, sentado de frente a um aquecedor de ferro e entre uma harpa punu, um grupo de figuras ioruba e duas flechas da tribo kanak. Ombros caídos, olhar vago, parece perseguido por estes "fetiches" que estão próximos do crânio de um pequeno animal, localizado um pouco acima de sua cabeça. Como se tivesse sido surpreendido pela objetiva, ele, que tinha o hábito de fixar a câmara com seus grandes olhos escuros, parece estar tomado por estas divindades estranhas e por estes espíritos silenciosos que exercem seu poder tutelar sobre o artista, que se torna seu "intercessor".
A estas reflexões complexas e ao golpe inusitado constituído pela estranheza das "Demoiselles d'Avignon", impregnadas pela liberação das pulsões apaixonadas, soma-se a descoberta da obra de Cézanne por ocasião da grande retrospectiva que o Salon d'Automne organiza em sua homenagem, logo após a sua morte. O oposto absoluto às violências do museu do Trocadéro se oferece aos visitantes: uma tentativa extraordinariamente coerente de construção do sujeito no âmbito de um grande respeito a uma sensibilidade visual exacerbada.
A exposição exerceu um grande impacto sobre todo o meio artístico, que na realidade ignorava o trabalho desenvolvido pelo velho mestre em seu retiro de Aix-en-Provence. Os historiadores da arte têm uma lastimável tendência a privilegiar as aproximações formais. Neste caso, tendo em vista o nascimento do cubismo, talvez as conversações entre os artistas sobre Cézanne tenham sido mais determinantes para o futuro do que a própria verificação visual de suas obras. A importância da transmissão verbal é sempre minimizada na história da arte, pois não deixa traços para uma disciplina que se alimenta de testemunhos e documentos. A fórmula de Cézanne, tal como foi exposta a Émile Bernard em 1904, "tratar a natureza por meio do cilindro, da esfera, do cone, o conjunto todo colocado em perspectiva", talvez tenha produzido um impacto tão grande em Picasso quanto as próprias obras. Pois, afinal, um exame das obras de Cézanne não fez com que se encontrasse evidências de uma geometria tratada de maneira tão literal quanto Picasso viria a fazer. A "Cabeça de Mulher", de 1908, majestosa e autoritária, resulta de uma interpretação a partir de planos e volumes geométricos imbricados. A "Mulher de Verde" (1909) nos fornece sua versão pictórica dominada por uma gama de cores que vai do marrom ao verde-oliva, em todas as nuances, surdas ou luminosas.
Em três anos de uma fulgurante invenção criativa, vemos o cubismo se desdobrar por meio de novas idéias que surgem com intervalos de algumas semanas. (...)
Em 1920, os últimos clarões do cubismo o conduzem a composições menos tensas e mais coloridas. A natureza-morta continua a ser um de seus temas prediletos, mas a gama monocromática foi substituída por uma riqueza colorística. O desenho rigoroso e arquitetado dá lugar à fluidez de curvas mais suaves. A construção se opera mesmo em "Nature Morte", de 1923, por meio da distribuição de grandes planos de cor em que o desenho somente contribui com o toque de uma referência superficial convencional. Ele continua ligado a essa semântica dos atributos de sua iconografia e não oscila quase nunca na direção da abstração total que é experimentada por seus amigos.
A criatividade bem-humorada e sem limites de Picasso se alimenta basicamente de temas relativamente convencionais (natureza-morta, nu, paisagens etc.) e só existe em função das reações de uma curiosidade sempre alerta diante dos objetos confrontados cotidianamente. A importância dos objetos familiares que permanecem no ateliê ou que o decoram ("arte primitiva") nunca deve ser minimizada.
Ao período de calma tranquila sucede uma visão torturada do ateliê. Em "Interior com Cavalete" (1926), o colorido se anuncia macabro, e as pernas de um gesso clássico são contorcidas de forma inquietante. A quimera monstruosa que começa a frequentar os redutos sombrios do ateliê não demora a surgir na forma do minotauro, monstro destruidor e devorador. Uma de suas versões mais surpreendentes é aquela que realiza em 1928, em forma de colagem, e que será reproduzida em tapeçaria para Marie Cuttoli, em 1935. O desenho, de uma elegância contida, se impõe por seu grande formato e pelo domínio do efeito do movimento, que se opõe aos planos de fundo e à estranha "meia" de reflexos achamalotados.
Com obras como esta, Picasso flerta com o surrealismo, que se impunha na época nos meios de vanguarda em Paris. Torna-se ao mesmo tempo a encarnação das angústias e dos perigos que marcam os anos 30. A corrida torna-se desenfreada com "O Acrobata Azul", de 1929. A distribuição dos membros e da cabeça em torno de um eixo que substitui o tronco produz uma figura radial encaixada nos limites da tela. Os membros-raios fazem com que a progressão deste contorcionista, mais do que acrobata, se dê por meio de volteios.
A desarticulação e a distorção do corpo se acentua ainda mais nas figuras femininas do final dos anos 20. "Mulher Deitada", de 1929, ostenta de maneira provocadora as zonas erógenas de seu corpo; o resto é reduzido a protuberâncias tentaculares e angulosas. Breton dizia de Picasso que ele não tratava a mulher como sujeito, mas como objeto. A propensão, sempre presente, de representar seu entorno imediato o leva a retratar Marie-Thérèse Walter na forma do busto que acabara de fazer ("Mulher com Tulipas", 1932). Sua ligação afetiva recente lhe proporciona um equilíbrio sensível tanto na associação do rosto da mulher amada com as flores e as frutas quanto na alegria equilibrada das cores. É a mesma companheira que o inspira na série de corpos femininos tratados como curvas condensadas que terminam em pontas, como no desenho "Minotauro e Nu" (1933). O animal-monstro que tenta travar o vôo feminino não é mais que a encarnação do artista.
O ano de 1935 é, segundo o próprio artista, um dos piores de sua vida. Ele passa por fortes tensões. Não consegue se divorciar de Olga e Marie-Thérèse fica grávida. Picasso fica tão deprimido que pára de pintar durante vários meses depois de ter executado "La Musa" (1935). Como antídoto à pressão que o aflige, a cena descreve duas jovens mulheres fechadas em um aposento com as cortinas fechadas. Sob a proteção tranquilizadora de um buquê de flores, uma delas dorme, enquanto a outra se entretém em desenhar à frente de um espelho. A atmosfera fantasmática é a de uma vida reclusa repleta de calma e tranquilidade. Depois das formas redondas de 1933, as figuras angulosas retornam. As mãos se alongam como espigas de trigo. As cores se tornam frias e estridentes.
Alguns de seus admiradores se inquietam frente às vicissitudes e lhe constrangem a voltar às grandes composições clássicas dos anos 20. Ele efetivamente volta à pintura da história, se assim podemos dizer, em 1937, mas cria uma nova surpresa: nunca está onde esperávamos que estivesse. "Guernica" é um testemunho político vibrante que mistura elementos míticos, a emoção dramática e as referências à pintura antiga com aquele estilo no qual os elementos deslocados e fragmentados tornam-se significantes, linguagem na qual ele havia se tornado mestre.
Como antes, uma composição desta importância não o afasta de seu meio ambiente e da inspiração que ele lhe abre. Ele continua a fazer retratos de suas companheiras -agora sua musa é Dora Maar- e daqueles que estão à sua volta. A partir do fim dos anos 30, começam a surgir as inumeráveis variações sobre o rosto humano, principalmente o feminino. Eles se tornarão a imagem caricatural do estilo Picasso para o grande público. Podemos encontrar neles todas as grandes invenções do pintor: a geometrização dos traços e a exacerbação dos olhos ("Mulher Sentada na Poltrona", 1941), a combinação das abordagens de frente e de perfil ("Retrato de Mulher com Colar Malva", 1937), chegando às vezes a um verdadeiro desdobramento em um jogo cromático negativo-positivo ("Mulher com Gato", 1964) ou mesmo um triplo desdobramento com a inserção de um perfil no rosto frontal e a repercussão do perfil invertido em sombra projetada ("Jacqueline Sentada com Cachorro", 1961); o deslocamento de elementos, tal qual surgiu nos anos 20, repuxando um olho em uma posição aberrante em vertical; as cenas de família com afetividade mais ou menos comunicativa ("A Família", 1965); a pesquisa da semelhança, nem sempre bem-sucedida ("Retrato de Sylvette", 1953); o expressionismo respingante e desenfreado ("Matador e Mulher", 1970).
Todos eles traduzem em uma linguagem de signos recém-elaborados a sensibilidade e a emoção de um artista radical e inspirado diante do teatro humano onde a sexualidade se afirma com uma evidência raramente conhecida no Ocidente até então. "O Pintor e Seu Modelo" (1963), retomado a partir de inúmeras versões, fornece-nos a ilustração exata disso, associando a presença do casal, o fantasma do ato e o prazer do voyeur. Quando as relações do casal se tranquilizam, como ocorreu com Jacqueline em meados dos anos 50, o ateliê esboçado em alguns traços e superfícies de cores leves e luminosas irradia esta felicidade, embalada pela lenta oscilação da cadeira de balanço, e abre os horizontes para incluir a paisagem de palmeiras ("La Californie", 1956).
Seria ele mais bem-sucedido na pintura da tragédia humana do que da felicidade? A feitura rápida, o traço incisivo, o deslocamento do corpo, as variações radicais de escala concorrem para conferir às cenas dramáticas sua amplitude mais favorável. Não é de surpreender, portanto, que Picasso tenha se concentrado e se obstinado no tempo das touradas ("Cenas de Tauromaquia", 1955). Além das lembranças e da fidelidade à cultura hispânica, a tauromaquia lhe oferece componentes da aventura humana. O risco do toureiro é total, ele se mede com a morte; o touro está condenado de antemão; o homem e o animal, porém, estarão unidos durante o combate. O todo se perfaz frente à multidão reunida, que revive a tensão do drama que se desenrola diante de seus olhos.
Perseguido pela morte, fascinado pelos riscos que o toureiro enfrenta para proporcionar prazer ao público, Picasso não podia deixar de estabelecer um paralelo com sua própria atividade. Em um mundo que se esforça em apagar todas as manifestações rituais da morte, era natural que a tourada se impusesse. Misturando estreitamente os dois protagonistas em um turbilhão de violência, ele restitui a este rito, além dos vestígios da tradição, seu impacto na consciência coletiva de uma sociedade que gostaria de apagar a morte e fazer desaparecer a desaparição.
Podemos imaginar que o choque que Picasso sentiu no museu etnográfico em 1907 foi determinante para a sua carreira. Naquele momento, atribuiu a seu trabalho o papel de intercessor frente às forças obscuras que sentia habitarem nele. Talvez nunca tenha deixado de lado essa visão que agiu com tamanha força sobre seus sentidos, tanto que chega a mencionar também os odores. Picasso criou sem cessar objetos estranhos e monstruosos, receptáculos de emoção e portadores de signos que ressoam, hoje mais do que nunca, como equivalentes das obras da África, da América e da Oceania, que inquietam e fascinam devido ao desconhecido que carregam em seu bojo.
Sem cair num universalismo idealista e ingênuo (as obras de Picasso são ilegíveis para muitos africanos), parece ser o artista que conseguiu fazer a ponte entre nosso imaginário coletivo e uma imagética que rompe com o naturalismo do Renascimento, como muitos dos objetos denominados "primitivos" funcionam no seio de ritos destinados a uma conciliação com as forças transcendentais. Sua pintura é a de um intercessor entre o invisível, a metafísica -os deuses, teríamos dito outrora- e os mortais, habitados por temores e prazeres, que ele soube encarnar num fogo de artifício de pinturas que é talvez o último da arte ocidental.

Jean-Hubert Martin é curador da exposição especial Universalis, que integra a 23ª Bienal Internacional de São Paulo, responsável pela escolha dos artistas da África e da Oceania; foi conservador do Palácio de Tóquio, em Paris (de 1971 a 1976), do Centre George Pompidou (de 1977 a 1982) e do Museu Nacional de Arte Moderna de Paris (entre 1971 e 1982 e de 1987 a 1990), para o qual realizou as exposições "Le Dernier Picasso", "Cy Twombly", "Andy Warhol" e "Magiciens de la Terre", entre outras. O texto acima foi extraído de um ensaio maior do autor.
Tradução de Yara Nagelschmidt.

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