São Paulo, domingo, 6 de outubro de 1996
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Biografia de uma geração

MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA

No entanto, quantas tentativas de suicídio fracassadas não se revelam, "après coup", como um momento infeliz entre outros, um momento de engano que a continuação da vida tornou insignificante, superado por outros acontecimentos mais felizes ou mesmo mais trágicos. Gosto do verso de Luiz Melodia que diz "quem quer morrer de amor se engana". Também gosto do poema de Ana Cristina Cesar que diz, irônico como tudo o que ela escreveu: "Desço para o parque. Pego a China em ondas curtas, pego o pó com medo, bato o filme até o fim procurado desde a hora em que ela pôs os pés no sul./ Ou não era suicídio sobre a relva./ Eram brincos caídos/ e um anel de jade que selasse numa dura castidade / minha fúria de batalha/ que viaja e volta" (1).
Fúria, castidade de moça difícil, ironia, pó, um suicídio de cinema, sobre a relva -o que haveria já, neste poema de 82/83, que antecipasse o salto de Ana Cristina para a morte alguns meses depois? Tudo. Ou nada. É fácil demais explicar a obra de uma grande poeta pela morte que ela escolheu.
Eu mesma, leitora e releitora dos versos de Ana Cristina, só percebi que vivia fascinada por esta inversão de sentido, por esta facilidade interpretativa, depois que li o lindo ensaio biográfico de Italo Moriconi sobre a poeta. Ensaio biográfico, insiste o autor, e sobretudo um ensaio literário, que analisa cuidadosamente a poesia de Ana à luz da sua vida, da sua morte como um fato entre outros, e do que é ou foi ser uma moça brasileira, carioca, letradíssima, politizada, esperta, sensível e um pouco doida na nossa década de 70. Uma década que, para o autor, só se encerra como período cultural agora, nos anos 90.
O que lhe permitiu tratar a vida/obra de Ana Cristina Cesar como algo que toca a todos os que viveram com intensidade o período que vai do auge da ditadura militar ao começo da "abertura", como um fenômeno de geração, condensado de forma exemplar nas percepções desta jovem que antecipava em sua poesia o que de certa forma estava acontecendo com todos nós: "É sempre mais difícil ancorar um navio no espaço" (2).
Italo Moriconi se confessa, logo nos primeiros capítulos, pouco disposto a escrever uma biografia "completa" de Ana, "no estilo daqueles calhamaços americanos (...). É que a biografia como gênero literário trabalha no oco, trabalha o impossível: definir o âmago de uma pessoa" (págs. 20-21). A esta obsessão de médico-legista Italo renuncia elegantemente, preferindo fazer de conta que está apenas juntando alguns dados para uma "futura biógrafa" (assim mesmo, no feminino) de Ana Cristina, a quem se dirige algumas vezes ao longo de seu texto, também com ironia: "A poeta, qualquer, antecipa e, se não justifica, pelo menos explica a pessoa. Você não concorda, leitor hipócrita? Futura biógrafa, meu irmão, minha semelhança" (pág. 100).
Seu ensaio sobre Ana Cristina é feito de uma série de delicadezas, renunciando a todos os abusos interpretativos: ele não cai na facilidade de ler a poesia de Ana como prenúncio de suicídio, como tem a gentileza de não psicanalisar a relação da poeta com a família, namorados e namoradas. Também recusa "amarrar o texto de Ana a um projeto de identidade feminina" ou "prendê-la, qual borboleta de cientista, ao quadro da homossexualidade chapada" (pág. 107).
A afinidade deste ensaísta com seu objeto, percebe-se logo, não passa pela ânsia de tudo explicar; é como poeta que Italo Moriconi entende Ana Cristina Cesar, como poeta, Italo Moriconi nos oferece uma espécie de "biografia à clé" que não desvenda nem a obra nem a autora. Apenas continua, com arguta inteligência, o movimento iniciado pela poesia de Ana, sabendo que "a morte a transformou em precursora. A poeta morta fertiliza o solo, calma e docemente" (pág. 97). Desta fertilidade se nutre o texto de Italo Moriconi.

NOTAS
1. Ana Cristina Cesar, (sem título) em "A Teus Pés", pág. 49, Brasiliense, 1983.
2. Ana Cristina Cesar, "Recuperação da Adolescência", em "A Teus Pés", pág. 57.

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