São Paulo, domingo, 6 de outubro de 1996
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Heróis dos EUA dependem de inimigos para sobreviver

OLIVER STONE
ESPECIAL PARA "NYT BOOK REVIEW"

TIPO DE MATERIAL: Romance pré-roteiro de cinema.
GÊNERO: Ação.
ÉPOCA: Futuro próximo.
LOCAÇÃO: Washington, mas também o mundo.
ORÇAMENTO: Alto.
ARGUMENTO: Excelente.
DIÁLOGOS: Na média.
ENREDO: Acima da média.
PERSONAGENS: Bons.
SINOPSE: O presidente, o Congresso e a Corte Suprema são eliminados quando um piloto de carreira japonês dá uma de terrorista e atira um 747 contra o Capitólio. O inexperiente vice, o agente especial Jack Ryan, empossado momentos antes da tragédia, é forçado a assumir a Presidência, combater os iranianos (que lançaram uma ameaça com o vírus Ebola), declarar a lei marcial, evitar a sangrenta tentativa de sequestro de sua filha e por fim salvar o país.
COMENTÁRIO: Infelizmente, o livro trata sobretudo do que há de errado com os EUA e de como Jack Ryan pode fazer desse país um lugar melhor (mas não exatamente o tipo de lugar que agradaria a Oliver Stone). Mas o maior problema é que Ryan não tem muito o que fazer por aqui. Sem os russos para derrotar (como em "A Caçada ao Outubro Vermelho") e sem os traficantes colombianos para derrubar (como em "Perigo Real e Imediato"), este livro será uma grande decepção aos fãs de Clancy. Passar direto, enquanto, é claro, não fizerem um novo roteiro. Depois, reconsiderar.
Por trás de cada romance de Clancy está um pálido Ian Fleming esperando a hora de aparecer. Perto de "Executive Orders" (Ordens Executivas", 874 págs., G.P. Putnam's Sons. US$ 27,95), o último Clancy, as memórias de Richard Nixon (1.120 páginas) parecem bem mais divertidas, se não igualmente ridículas.
À maneira inimitável de Clancy, "Executive Orders" quer nos convencer de que Jack Ryan (Harrison Ford em dois filmes) -o esperto agente da CIA, adversário do direito ao aborto, tudo o que Oliver North sempre quis ser- tornou-se interinamente vice-presidente dos EUA, graças a um escândalo sexual envolvendo seu antecessor (acho que Jack Ryan ainda não passou pela experiência de uma ereção casual).
Evidentemente, isto permite que Clancy, disfarçado de Ryan, realize sua mais secreta fantasia, tornando-se presidente por 874 páginas. Ele consegue não somente perseguir os linhas-duras iranianos por lançarem o letal vírus Ebola contra os americanos (embora tenham casualmente resolvido um problemão, ao tomarem o Iraque), mas também reconhecer Taiwan, para alfinetar os herdeiros de Mao Tsé-tung, mudando de quebra a maré psicológica contra o terrível Império Liberal da Mídia. (Confesso que me pergunto, afinal, de que império liberal da mídia se trata. Nos anos 70, as pessoas que não aguentavam mais a criminalidade receberam "Dirty Harry" ("Perseguidor Implacável", no Brasil). Nos 90, quando uma população cansada e enojada em tempos pré-eleitorais se atira ao chão enquanto a Casa Branca é feita em pedaços durante "Independence Day", as pessoas que não aguentam mais todo o exaustivo processo da mídia recebem Jack Ryan).
O maior equívoco de Clancy foi deixar que Jack Ryan, um herói de ação por excelência, ficasse falando o tempo todo sobre o que um presidente deve fazer, em vez de ir lá e botar para quebrar. É exatamente isto o que o presidente Harrison Ford faz em seu próximo filme, "Air Force One". Desta vez, Clancy parece estar aquém do "Zeitgeist".
Como sempre, o enredo criado por Clancy é em parte diabolicamente inventivo. O autor tem o domínio técnico do detalhe realista, como o assustador emprego do Ebola como instrumento de guerra em vez da natureza. Esse realismo, porém, dá-se às custas do fluir da narrativa. Cabe aqui a pergunta sobre se alguém de fato "edita" Tom Clancy, ou se existe algum "workaholic" que realmente leia cada um de seus parágrafos cibernéticos, com suas indefectíveis expressões de mágoa, raiva, medo e aquela pitada de amor que no mundo de Clancy talvez signifique o mesmo que "responsabilidade".
O verdadeiro espírito do livro está na dedicatória a "Ronald Wilson Reagan, 40º presidente dos EUA: o homem que venceu a guerra". Só queria saber a que guerra Clancy está se referindo: Granada? Líbia? Ou as guerras de Bush no Panamá e no Golfo? Certamente não sou o único veterano do Vietnã que tem pesadelos cada vez que os Tom Clancys deste mundo promovem esse reverente mito da vitória de grandes guerras, quando na verdade a analogia mais apropriada para o nosso comportamento como nação venha das contracapas daquelas revistinhas que líamos na infância, prometendo ao fracote de 50 quilos que, se ele enviasse a quantia de US$ 0,25, poderia acabar com a raça do valentão da praia e ainda agarrar sua garota. Será que ninguém percebeu que em nossos filmes e em nossa cultura popular nós nos tornamos o valentão da praia? Quando foi que Stallone passou pela transformação do gibi e tornou-se um símbolo nacional?
Desconfio que Clancy está celebrando o recorde guerreiro de Reagan. Parece referir-se à perpétua guerra que vem travando em sua cabeça contra todos os demônios externos, sejam os árabes, os chineses, as veias drogadas da nossa própria gente, ou os alucinados liberais de Hollywood. Está certo que a promoção de uma cultura da ameaça é e sempre foi uma função do pop, mas agora está sendo ideologicamente transformada em realidade política. O problema é que, como dizia minha avó, um menino não pode reclamar do lobo mau todo dia sem acabar atraindo o próprio Grande Lobo Mau.
Quando leio e vejo coisas desse tipo o tempo todo saindo de Hollywood, fico me perguntando se não estou fora da realidade. Será que os velhos e os jovens deste país, bombardeados por filmes de ação e romances de Tom Clancy, sequer se lembram de que um dia o patriotismo era às vezes considerado como emoção altamente suspeita, que se prestava à patrulha, à desconfiança e ao assassinato de estrangeiros e muitos linchamentos locais? Ninguém está lembrado de que -como Henry Fonda e Jimmy Stewart talvez tenham dito em seus melhores papéis- tantos canalhas já brilharam em nome do patriotismo, em tempos de terror e degeneração?
Prosperar nesse clima é o mesmo que ajudar a criar esse clima. Provoque o terror e depois resgate os aterrorizados, e você será um herói para sempre. É assim que o cavaleiro branco Tom Clancy (vulgo Jack Ryan) salva sua noiva (os EUA) das garras do terrível Árabe, Oriental, Marginal, e por aí vai.
O mito é falso. Você resgata apenas a si próprio. De sua natureza mais tenebrosa. A noiva, o outro que você resgata, também é você mesmo -seu lado feminino, como quiser. No fim das contas, a meu ver, todo o propósito desse exercício teatral é a reintegração de si mesmo. Eis o verdadeiro final feliz. Tudo bem, dou a maior força, Mr. Clancy, mas não vamos levar a nossa batalha privada tão a sério, ou tão publicamente. E isto vale para o senhor também, Mr. Stone.

Tradução de Sérgio Alcides.

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