São Paulo, domingo, 6 de outubro de 1996
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A esquerda passada a limpo

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ruy Fausto resolveu passar a esquerda, ou, mais especificamente, o marxismo uspiano a limpo. Pouco antes de publicar mais um de seus livros sobre Marx e suas relações com a tradição dialética, que deve sair ainda este mês pela Brasiliense, o filósofo concedeu uma longa entrevista à Folha, da qual o que segue é apenas uma parte.
Como seu livro (ele é o primeiro a admitir) é muito "técnico", achou mais adequado comentar -e criticar- a obra de três expoentes do pensamento marxista no Brasil -José Arthur Giannotti, Roberto Schwarz e Paulo Arantes.
São críticas desiguais. Em relação a Giannotti, elas ultrapassam muito o plano meramente teórico. Em relação a Schwarz e Arantes, desembocam numa profunda desconfiança em relação ao gênero "formação", do qual os dois pensadores, na esteira da obra de Antonio Candido, são os principais herdeiros no país.
O novo livro de Fausto, "Dialética Marxista, Dialética Hegeliana: a Produção Capitalista como Circulação Simples", integra um conjunto de sete livros (divididos em duas séries), nos quais o autor trabalha há pelo menos 25 anos. Cinco deles já estão praticamente prontos ou publicados.
Ruy Fausto passou pelo Brasil entre julho e setembro. Voltou na semana passada a Paris, onde vive e é professor de filosofia.

Folha - Embora esteja longe do Brasil, o sr. tem acompanhado o governo FHC. Enquanto intelectual, como se situar diante dele.
Ruy Fausto - O governo Cardoso representa, para a esquerda, um objeto difícil. Como me dizia mais ou menos assim o historiador Luiz Felipe de Alencastro, o que existe de mais perigoso na esquerda brasileira atual -ele se referia em particular à intelectualidade de esquerda- é a tendência a se identificar com o atual governo. O fato de que há um número muito grande de intelectuais que é ou foi mais ou menos íntimo do presidente (se amigo íntimo ou inimigo íntimo, a diferença não é tão grande) é um dado perigoso. O presidente joga a fundo a carta da incorporação do maior número possível de intelectuais "oposicionistas", o que, do seu ponto de vista, é sem dúvida, como dizem os franceses, "de bonne guerre". Mas, em acordo com Alencastro, acho que, para a intelectualidade de esquerda, a regra mais importante é se manter independente. Não participar do governo sob pretexto de fazer trabalho útil. Se ela não tiver essa atitude, corre o risco de se diluir numa "pizza". É difícil que a experiência Cardoso dê muito certo. Ela ou dará um pouco certo, ou dará errado. Para além disso, há um problema na própria qualidade humana da equipe governante. Há, certamente, no meio deles, gente de boa vontade. Mas, em geral, o perfil do tucano é difícil de engolir para um homem de esquerda. Empafiado, arrotando sabedoria, embora só mediamente competente, sem muitos princípios etc. etc. Isto não serve. É preciso manter distância dessa gente.
Folha - A Folha publicou recentemente um texto de Roberto Schwarz sobre o primeiro seminário de leitura do "Capital", feita entre outros por FHC no início dos anos 60. O texto fez barulho e já provocou uma réplica. Parece que o sr. não gostou muito do que leu.
Fausto - É, não gosto muito do artigo do meu velho amigo Roberto Schwarz. Também não gosto muito do texto crítico que meu ex-aluno e também amigo Emir Sader escreveu a respeito para "O Estado de S. Paulo", mesmo se se deve reconhecer-lhe o mérito de ter lançado a discussão. Acho que o texto de Schwarz idealiza e simplifica o fenômeno primeiro seminário. Diria que o texto é reducionista e em sentidos diversos. Temos lá a história de um grupo universitário, e sem dúvida, como pano de fundo, a história, digamos "estrutural" do Brasil. O que falta? Primeiro, acho que Schwarz não distingue suficientemente a história das ideologias da esquerda, que depende da história dos grupos e partidos de esquerda, e de outro lado a história do pensamento universitário. A primeira é mais ou menos diluída na última. Em segundo lugar, creio que ele não distingue suficientemente a história do pensamento universitário brasileiro em geral e a história do seminário. De novo me parece que a primeira história é diluída na última. Em sentido inverso, tenho a impressão de que Schwarz tende a reduzir a realidade micro-social do seminário a sua realidade macro-social. Em resumo, salvo erro, o texto opera certas reduções, tanto em detrimento dos registros mais amplos, como dos registros menos amplos. Tudo é ordenado em função da história intelectual do seminário, e o resultado não me parece satisfatório.
Dou alguns exemplos. Schwarz escreve em seu artigo: "Uma das melhores contribuições do seminário não veio dele senão indiretamente. Espero não forçar a realidade achando que 'Homens Livres na Ordem Escravocrata' (1964) de Maria Sylvia de Carvalho Franco, embora elaborado fora do grupo respira o seu mesmo clima crítico, ideológico e bibliográfico". Ora, Maria Sylvia (de quem não sou amigo, mas cujos trabalhos, em parte, aprecio) não participou do primeiro seminário. E não somente não participou. O grupo, digamos, dirigente do seminário competia com ela -lembro-me bem- e de forma muito dura. Um economista brasileiro bastante conhecido, que residia então no Chile, se queixou junto a mim do silêncio que uma das figuras de maior destaque no seminário fazia em torno da obra de Maria Sylvia. E em São Paulo, não me esqueço da verdadeira onda que fazia uma outra figura de destaque do seminário, onda não isenta de um ranço machista, em torno "dessas mulheres que não terminam nunca as suas teses". Ora, Roberto incorpora tranquilamente o livro de Maria Sylvia ao seminário. A intenção de Roberto é justa e generosa, o trabalho de Maria Sylvia é de grande valor. Só que, de fato, Maria Sylvia não participou e em certo sentido nem poderia ter participado.
Quanto à questão da história ideológica, Roberto não diz nada sobre o fato de que, fora dos partidos comunistas, no Brasil como no mundo, havia grupos militantes em que se desenvolvia um pensamento de crítica tanto à URSS como à política dos PPCC e à sua visão do desenvolvimento capitalista (havia também socialistas democráticos). Que o pensamento de tais grupos era esquemático, claro que sim. Mas ele existia. Ora, Roberto descreve o seminário como um centro em que se desenvolvia um pensamento alternativo em relação às teorias e às políticas do PCB, mas não diz nenhuma palavra sobre o que já existia de paralelo, na mesma época, num plano que se pode chamar ideológico.
Quando começou o seminário, eu já estudava Marx e pensava em escrever sobre ele. Logo me dei conta de que se continuasse a participar não teria muitas condições de desenvolver um trabalho independente, ou de desenvolver um trabalho simplesmente. Alguns anos depois do início do seminário, encontrei em Paris um dos personagens mais importantes que me disse em tom de sermão: "Você abandonou o Seminário. Com isto, nunca mais saberá o Capital!". A transcrição é literal. Como se vê, a megalomania, a empáfia, o autoritarismo desses senhores já era evidente. Nada a ver com a visão idílica de Schwarz.
Vê-se por aí que a descrição otimista de Schwarz é em certo sentido verdadeira, mas no pior sentido. A hegemonia do seminário era real, mas em parte, pelo menos, era uma hegemonia de poder. E os discursos otimistas sobre o seminário acabaram se relevando objetivamente pouco inocentes, porque tiveram como efeito reforçar o poder de certas pessoas.
Folha - O sr. andou criticando o gênero "formação", do qual Schwarz, enquanto discípulo de Antonio Candido, seria adepto.
Fausto - Exato. Um problema teórico seria o de saber em que medida as insuficiências da análise do meu amigo Roberto são insuficiências da sua análise, ou têm a ver de um modo mais geral com o gênero "formação". Ou se trata das dificuldades de uma análise "à chaud" de um processo de formação? Não tenho uma resposta para isso. Mas confesso que desconfio um pouco do gênero, e que tenho a impressão que alguma coisa, digo alguma coisa, da crítica dos seus adversários talvez seja verdadeira. Há um texto na "Filosofia da História", de Hegel, que cito de memória, em que se diz mais ou menos o seguinte a propósito da reconstituição do passado: "Mesmo que tenha havido injustiça, isto não tem importância". Eu diria que daí data a catástrofe. A bem dizer, Roberto -como também Paulo Arantes-, gente fina e de bom caráter, trata como já vimos de corrigir as injustiças. Mas eles não as teorizam, porque supõem que a micro-história, que existiria por toda parte, é assunto para o Café do Comércio. Engano.
Folha - Desde julho, quando chegou ao Brasil, o sr. polemizou muito, principalmente com Giannotti, mas também com Paulo Arantes, além de outros. Qual o sentido das suas críticas?
Fausto - Vamos por partes. A crítica que faço a Giannotti nada tem a ver com as críticas que faço a Arantes e outros. O assunto é delicado, tem uma aparência de querela pessoal sem importância. Acho que não só vale a pena tratar dele, mas que é necessário voltar a ele e de forma detalhada.
Hoje se começa a fazer uma crítica política a Giannotti. Refiro-me, por exemplo, ao que escreve Arantes em "O Fio da Meada", não aos que o criticaram porque aceitou cargo no governo: isto é simplesmente bobagem. Essa crítica política é útil, mas antes de fazê-la é preciso fazer uma crítica ética e teórica. Em geral, devo dizer que a primeira coisa que critico em Giannotti são os seus métodos. A atitude de Giannotti sempre foi de extrema violência em relação aos mais frágeis. Diria que o jogo dele no plano da vida universitária é extremamente bruto, e que o seu procedimento, apesar das aparências, é incompatível com uma vida universitária sã. Para ele, todos os métodos são bons: "espionagem" de colegas, elaboração de listas de idéias pensadas por outros para uso próprio sem referência à origem, omissão dos livros consultados e repito, em geral, violência contra os mais frágeis.
Para neutralizar as críticas possíveis, Giannotti sempre se serviu de dois recursos. Um é o de imputar "loucura" aos que fazem a crítica de seus métodos. Esse procedimento é conhecido por quem já se ocupou um pouco de psicologia social. Trata-se de imputar loucura ao outro visando enlouquecê-lo de fato. Se se julgar que exagero, vejam-se pesquisas recentes de psicólogos sociais, sobre a violência e a frequência dos processos de liquidação psíquica e até física de indivíduos, pela pressão de outros indivíduos ou de grupos dentro de instituições. Quando a operação funciona, os agressores dizem a posteriori: eu sempre disse que a pessoa "x" era maluca. O juízo pode ser mais ou menos válido para o presente, mas é falso para o passado. Só que o falso juízo do passado é a causa da situação de fato que tornou verdadeiro o juízo relativo ao presente.
O outro método consiste em dizer que se trata de questões pessoais e portanto irrelevantes. Ora, essas questões não são pessoais em sentido corrente. Elas são questões éticas e portanto são universais. Giannotti até inventou uma teoria pro domo (para uso próprio) sobre a separação entre o que é pessoal e o que é público. A teoriazinha é um modelo de casuística miserável, indigna de quem pretende ter lido Kant. Claro que há coisas que são estritamente pessoais e portanto moralmente neutras. Mas há outras que, embora tenham lugar no mundo micro-social, são de interesse universal. No primeiro caso, contrariamente às aparências, está por exemplo a vida sexual. Em si mesma, ela é indiferente à ética (sempre que não houver violência, envolvimento de crianças etc.). A tentativa de universalizar práticas que são efetivamente do domínio pessoal é o que se chama de moralismo. Mas há o segundo caso, aquele em que estão em jogo as regras de justiça, ou que envolve problemas de lealdade fundamental, como por exemplo o das relações entre intelectuais dentro e fora da universidade. Nesse caso, há regras, ou pelo menos limites, e o que está em jogo é universal e não pessoal em sentido corrente, mesmo se "passa" pelas pessoas. A redução ao particular desse domínio universal é o que se chama de amoralismo. É o que se encontra teórica e praticamente em Giannotti. Diga-se de passagem que não é por acaso que ele não tolera o pensamento de Adorno. A crítica adorniana que, muito mais do que a de Marx, toca na subjetividade e no caráter, é perfeitamente incompatível com as suas práticas, porque dá a chave para a desmistificação delas.
Folha - E Paulo Arantes?
Fausto -Já me manifestei algumas vezes sobre os livros mais recentes de meu amigo Paulo Eduardo. A julgar por algumas das suas intervenções orais, há um viés muito antifilosófico na sua perspectiva atual. Ele não vê muito futuro para o filósofo, senão um trabalho histórico-crítico sobre a formação -social- das idéias. O modelo teórico que informa esse trabalho são as obras de Marx e a tradição marxista. Por outro lado, ele privilegia, sem excluir o resto, os trabalhos sobre o Brasil. Cruzando antifilosofia e marxismo, digamos que no universo atual de Paulo Arantes, se encontra o pathos antifilosófico da "Ideologia Alemã", mas na base de uma lógica que vem do "Capital", e sem propriamente uma abertura, ou uma abertura explícita, para pensar uma práxis qualquer. No fundo trata-se de iluminar o movimento das idéias pelo movimento do capital. Tudo escrito admiravelmente, pensado com uma grande finura teórica e com um leque de referências realmente impressionante. O que me desagrada no resultado final? Por um lado, essa espécie de liquidação da tradição filosófica e da atividade propriamente filosófica. Não se trata de defender aqui, com espírito corporativo, o "métier" de filósofo, nem de retomar o ritual acadêmico da "defesa e ilustração da filosofia". Mas tudo se passa como se, no discurso de Arantes, a filosofia enquanto filosofia, mais ainda, como se a filosofia simplesmente, não tivesse mais nada a dizer.
Folha - Por que Arantes é levado a essa posição?
Fausto - Dando duas respostas que não se situam no mesmo plano, eu diria que por um lado ele transpõe para a crítica filosófica uma noção do que seja um "objeto pertinente" para o trabalho científico, que vem de Roberto Schwarz. Para Roberto, creio, o objeto pertinente é um objeto que existe necessariamente no tempo e no espaço. Não há muito "lugar" para um objeto que saia desse modelo. O tema das "idéias fora do lugar" é sem dúvida um tema de historiador e crítico da literatura e que, por outro lado, em si mesmo não prejulga muita coisa sobre a natureza geral das idéias. Mas, se o exportarmos para fora do espaço da literatura, e o tomarmos como se induzisse um modelo geral do que seria uma "idéia", teríamos como resultado precisamente a tese de que é da essência das idéias existir no tempo e no espaço. Acho que, em Roberto, grande crítico literário e não filósofo, isso não tem muita importância. Mas num filósofo, e num filósofo do tamanho de Arantes, isso leva a uma noção muito estreita do que seja um objeto pertinente para o trabalho científico. Coisas como lógica dialética, ética e outras mais perdem inteiramente a sua legitimidade. Aqui seria importante dizer que a "relevância cultural" -para retomar uma expressão empregada por Arantes- não se confunde com a "relevância teórica". Há problemas que são relevantes teoricamente sem ser relevantes culturalmente. Por outro lado -não imputo esse engano a Arantes- nem relevância teórica, nem relevância cultural coincidem necessariamente com relevância prática. Adorno fez a crítica do praticismo, defendendo a independência da teoria (de resto nunca se sabe se e quando ela mostrará o seu potencial prático). Parece-me que, num plano mais alto, Arantes incorre no mesmo erro, que não é mais um praticismo (porque é de segunda potência), mas num sentido particular, uma espécie de "culturalismo". São legítimos só os objetos que se dão no tempo e no espaço (entenda-se, vale, para o filósofo, só a crítica social das idéias). Quanto ao resto, não se sabe bem do que se trata.
Folha - O bordão sobre a morte do marxismo anda solto.
Fausto - A obra de Marx é imbatível enquanto crítica do capitalismo, apesar das mudanças que ocorreram no século 20. O marxismo, já disse, é essencialmente uma crítica do capitalismo, e não outra coisa. Por isso ele não só não dá conta das novas formas sociais de exploração e de dominação que surgiram no século 20 (essencialmente a sociedade burocrática), como por isso mesmo ele tem certa vocação para se transformar em ideologia desse tipo de sociedade de exploração e dominação. Há um lado desastroso na herança marxista: a idéia de que não existe hoje nada senão uma alternativa entre capitalismo e socialismo, quaisquer que sejam as transições e as "excrescências parasitárias". Quem pensa nesses termos, supõe que toda luta anticapitalista leva de uma forma ou de outra ao socialismo (se não for puro banditismo, e olhe lá...). Essa argumentação, que é a argumentação dominante, é virtualmente catastrófica.

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