São Paulo, domingo, 6 de outubro de 1996
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O percurso de uma obsessão

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Rico e arrogante, um jovem aristocrata na Itália do século 16 se deixa obsedar pela idéia de fazer de seu pai, morto prematuramente, um santo reconhecido pela Igreja. A concretização disso seria relativamente simples, não fossem dois motivos. Primeiro: o rapaz, de nome Pietro, não tem fé, só liga superficialmente para as coisas da religião; seu anseio por beatificar o pai é de ordem tão-somente ostentatória. Segundo: o próprio pai, Amedeo DiLazzari, não tivera uma vida considerada exemplar aos olhos da Igreja.
Apesar disso, usando o dinheiro que possui, Pietro "convence" o Vaticano a conceder o título póstumo. Pouco tempo depois, porém, recebe a notícia de que morrera o papa Inocêncio, com o qual acordara a beatificação, e de que o novo papa, Clemente, que conhecera Amedeo em vida, suspendera a decisão de seu antecessor.
Frustrado, em busca ainda de sua meta inicial, Pietro procura alguns religiosos e, por meio desses contatos, vai aos poucos se deixando dominar por inúmeras dúvidas a respeito de si mesmo, até chegar a conclusões extremas, radicais sobre a própria existência.
Esse é, em resumo, o enredo do romance "O Santo", vencedor do Prêmio Casa de las Américas (concedido pelo governo cubano) de 1994, estréia literária do paulista Décio Orlandi, 30.
O tema básico do livro é a relação entre fé e razão, explorada principalmente nos diálogos que o jovem aristocrata estabelece com diferentes sacerdotes, mas também em "fatos" que ele presencia, como o "milagre" pelo qual sua irmã muda, Cristina, passa de repente a poder falar e escutar.
Orlandi trata do assunto utilizando-se de uma linguagem econômica, pouco adjetivada, com uma técnica que lhe permite descrever locais e pessoas de maneira rápida e simples, "como se em aquarela", conforme destaca a escritora Ana Miranda na "orelha" do livro.
A mais marcante dentre as experiências por que passa Pietro em suas andanças, acompanhado do criado Paolo, é o contato, em um hospital, com a figura de Camillo de Lellis (o futuro São Camilo). Aí estão também trechos em que Orlandi alcança rara intensidade narrativa:
"À sua frente, a alguns metros, uma mancha negra arrastava-se sobre o piso de madeira. Precisou firmar o olhar: a mancha era um homem (...) Trazia a batina preta e vermelha erguida até quase a cintura; arrastava-se de lado, apoiando-se apenas sobre o braço direito, o lado esquerdo de seu corpo voltado para cima, sem tocar o chão (...) Aquilo parava de espaço em espaço, junto aos leitos..."
Sem atingir qualquer tonalidade panfletária ou anticlerical, Orlandi é às vezes impiedoso no trato das relações entre a Igreja, como instituição, e os homens comuns. Isso se evidencia não apenas no acordo inicial de Pietro com o papa Inocêncio, mas também no irônico destino que o autor reserva, no final do livro, para a "alma" do jovem italiano.
Tal posicionamento, em última instância crítico, é atenuado, porém, pelas conversas de cunho teológico/filosófico entre o herói e alguns sacerdotes "honestos", as quais, embora breves e não tão aprofundadas quanto se poderia desejar, foram construídas pelo autor com claro respeito pelo tema e visível seriedade.
Vale assinalar que "O Santo" é bem-vindo não apenas por suas próprias qualidades, mas por marcar, também, a estréia de uma nova casa no mercado editorial.

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