São Paulo, domingo, 6 de outubro de 1996
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'Screenagers' encaram o caos

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE BERKELEY (EUA)

"Playing the Future" ("tocando o futuro", em todos os sentidos da expressão portuguesa) saiu há pouco pela editora HarperCollins. Subtítulo: "Como a Cultura dos Jovens Pode Nos Ensinar a Navegar em uma Época de Caos". O autor é Douglas Rushkoff, 35, neto de imigrantes do Leste Europeu, que mora em Manhattan (leia entrevista à pág. 5-5).
Rushkoff é escritor, ensaísta, jornalista e inventor de software. Ele já publicou "Cyberia" (Harper San Francisco), retrato da cultura cibernética; editou "O Leitor da Geração X" (Ballantine) e "Media Virus" (Ballantine), sobre a mídia contemporânea. Ele é também o biógrafo autorizado de Timothy Leary.
Para ter uma idéia de seu novo livro, faça primeiro uma lista das coisas que você, pai de classe média, baixa e alta, eventualmente detesta no comportamento de suas crianças adolescentes. A paixão pelo surfe, que você acha uma perda de tempo, pelo skateboard, que você acha um perigo para os próprios jovens, e pelo snowboard, que, para os pais que esquiam, é perigosíssimo nas pistas, puramente performativo. Considere as "raves" e suas reuniões noite adentro com música eletrônica e "ecstasy". Acrescente todos os jogos eletrônicos de Sega a Nintendo até os mais elaborados CDs para computador. Acrescente também o uso intensivo e indiscriminado da Internet. E enfim, para completar, pense no infernal controle remoto da televisão e na assídua prática do zapping pelos adolescentes, que acabam transformando qualquer sessão de televisão em um momento de MTV. Grande final: o uso de tatuagens, brincos e outras jóias que perfuram os corpos.
Espantalhos adaptados
Pois bem, o livro sugere que estes espantalhos para pais e adultos sejam todos (e alguns outros) considerados como índices não de perdição, mas, ao contrário, da boa adaptação de nossas crianças ao mundo que nos espreita e que, aliás, nós mesmos fabricamos e propusemos para elas.
Por isso mesmo, Rushkoff escolheu chamar os adolescentes (teenagers) de "screenagers" (de "screen", tela): os jovens da época da tela (da TV e do computador). Mas, cuidado: ele faz isso não para criticar de novo a preguiça televisiva dos jovens. Ao contrário, ele o faz para indicar que as mudanças dos tempos talvez tenham produzido -quase por evolução darwiniana- uma nova geração adaptada às mudanças tecnológicas.
Os pressupostos de Rushkoff são simples.
Por um lado, há no livro uma descrição do mundo contemporâneo com a qual vai ser difícil discutir, quase banal: sobre a falta de valores comunitários para orientar a conduta e o universo em expansão, cada vez mais complexo. E uma insistência sobre a novidade de nosso mundo: seríamos todos, hoje, como imigrantes recém-chegados a uma terra estrangeira. Ora, tradicionalmente, no processo de imigração, são as crianças que aprendem primeiro a língua, os hábitos e os códigos do novo mundo. São elas que levam seus pais pela mão na exploração do que é para eles terra incógnita e já é, para as crianças, sua casa.
Por outro lado, há no livro um carinho ou mesmo uma cumplicidade para com as práticas dos jovens de hoje, que nos levam, no mínimo, a perguntar: e se as nossas indignações não passam de lamentos de um mundo que já era? E se nossa oposição à descoberta pelos jovens de um mundo que é deles não os estivesse impedindo de "navegar"? Os adolescentes nos parecem sem rumo? Mas o mundo também não nos parece sem rumo? Não será então o caso de pensar que suas condutas estão inventando modos possíveis de viver neste mundo sem rumo?
Os argumentos de Rushkoff podem convencer ou não. Em particular, ele adota uma metáfora na moda: compara os comportamentos não-lineares dos adolescentes com o surgimento de modelos matemáticos não-lineares (os fractais) para descrever realidades caóticas e nelas encontrar recorrências. A comparação é um pouco fraca, mas resta, nas mãos do leitor, a riqueza das análises e a generosidade com a qual é abordado o mundo dos "screenagers".
A integração ao caos
O surfe, primeiro exemplo de Rushkoff, é de fato um esporte para o qual é vital a capacidade de entender e antever este elemento tão complexo e caótico que é uma onda. Do mesmo jeito, o skateboard verdadeiro, de rua, é um exercício de conquista do terreno urbano que resiste à linearidade dos percursos. Idem para o snowboard, que não consiste, à diferença do esqui, em traçar trajetórias elegantes na neve, mas em deixar de uma certa forma o elemento neve decidir as evoluções.
Mais eloquente ainda: a nova geração, treinada na leitura rápida da linguagem icônica e reduzida dos quadrinhos, talvez tenha elaborado, ou darwinianamente produzido, uma capacidade de leitura das imagens muito mais rápida do que a nossa. Por isso, ela não se satisfaria com a contemplação passiva de um programa de televisão, preferindo o ritmo da MTV ou então surfando na massa de informação proposta pela TV, de imagem a imagem. Ela não é pouco atenta ou ou incapaz de concentração, mas possuiria um tipo próprio de concentração, que corresponde adequadamente à circulação de informação de nossos tempos.
Enfim, a Internet -ridiculamente temida como lugar de indiscriminada perdição e encontros perigosos- é de fato o lugar virtual onde aos poucos vem se reconstituindo uma comunidade perdida e a globalização não é só um projeto econômico multinacional.
Não é fácil dispensar o livro como uma pura provocação: afinal, há mesmo uma oposição misteriosa entre uma geração de pais que, em geral, foram teenagers nos anos 60 e querem se considerar progressistas e abertos, e uma geração de "screenagers" que encontra, vindo de seus pais, um desprezo sistemático e inexplicado por sua cultura.
Esperança na revolução
É curioso, por exemplo, que, na maioria dos casos, os adultos acusem facilmente os "screenagers" e sua cultura de não ter ideais sociais transformadores. Tanto mais curioso quando a acusação vem de pais que alimentaram grandes esperanças sociais em sua adolescência e acabaram quase todos voltando para o canil. Como se quiséssemos ver e detestar neles uma imagem de nós mesmos que preferimos não ver: um bando de excêntricos adaptados. É esta a definição deles ou a nossa?
O livro de Rushkoff vale como uma aposta. Tocar o futuro significa também acreditar na diferença de nossas crianças, não liquidá-las de antemão como um extravio, mas admitir por um instante que elas possam ser reconhecidas como a difícil invenção de maneiras de viver em um mundo novo, em que certamente nossa palavra não os guia.
A leitura de Rushkoff é uma aventura singular para adultos e sobretudo para pais. Ela é urgente, antes que o "gap" entre as gerações se consolide em um silêncio sem precedentes.
O apocalipse
Uma vez aceito pelo menos o princípio pelo qual vale a pena apostar nos "screenagers", uma visão um pouco apocalíptica me fica na cabeça.
Vejo uma espécie de paisagem urbana do futuro, um cenário de "Blade Runner", em que nas ruas inseguras e sujas surfa um exército de gangues skatistas e grafitômanas e, em algum etéreo andar superior, habita um outro mundo, limpo e seguro: seus membros interligados só pela virtualidade, comunicando e decidindo com as possibilidades do holograma, que terão quase o charme de realidade.
Mas os mestres do amanhã me parecem tristes. Não que eu ou eles achemos infeliz ou insuficiente a comunidade de troca de idéias, informações e sorrisos da Internet. É que gostariam também, de vez em quando, de descer e andar pelas ruas.
Este cenário que a ficção científica tornou banal não é nem mencionado por Rushkoff. E na verdade não faz parte de um futuro previsível nos Estados Unidos. As gangues não faltam e, em certos bairros, apesar dos indicadores econômicos favoráveis e da redução da taxa de violência, a rua continua inspirando medo. Mas é o mundo de cima que não consegue se manter afastado. A tecnologia básica da qual dispõe para sua comunidade virtual está cada vez mais às mãos de todos nos EUA.
À primeira vista, meu pesadelo futurista parece, então, ser mais brasileiro do que norte-americano. As ruas abandonadas a uma violência que as torna impraticáveis, repletas de gangues urbanas, que -em um mundo sem família e sem comunidade- acabam sendo o último recurso social dos abandonados pela tecnologia. E, de cima dos prédios bem guardados, uma rede comunitária de palavras, idéias e correspondências cujo acesso constitui um privilégio.
Como uma última ironia ou armadilha da pretensa modernização do Brasil, a informática e especificamente a Internet poderiam assim se tornar o instrumento decisivo da eternização de um sistema de castas. Perdida ou, melhor, destruída a idéia mesma de nação e de qualquer comunidade de destino, os "screenagers" brasileiros se dividiriam em dois grupos: aqueles que passivamente recebem a televisão nacional (ainda bem, diria Rushkoff, que ao menos eles têm acesso ao controle remoto) e aqueles que pertencem a uma comunidade nova, supranacional. Ligados nas TVs a cabo, inundados de informações globalizadas, encontrando na Internet um espaço de troca que a rua não permite -estes serão cidadãos do mundo.
O acesso à tecnologia não é só, nesse caso, uma questão imediata de poder. Nisso, aliás, Rushkoff sem dúvida tem razão: o acesso a Internet é hoje uma condição relevante da vida social, particularmente para os "screenagers". A Internet é sobretudo um instrumento de socialização capaz de inventar e manter, em nosso mundo, uma forma constante de diálogo. É deste instrumento que os "screenagers" de baixo seriam privados. Em suma: seriam privados, uma vez a mais, de uma chance de cidadania global.
Mas meu pesadelo poderia se transformar em seu contrário. A medalha tem duas faces. Apostar no monopólio da tecnologia informática como instrumento de privilégio social apresenta alguns riscos. O monopólio em questão não é coisa simples. Por mais que se consiga, por exemplo, à força de pretextos deficitários, manter a escola pública afastada da rede, o acesso é simples demais para que possa ser barrado. Os jovens, por desfavorecidos que sejam, o encontrarão e, assim, se a Internet continuar sendo o que é, inevitavelmente acabarão dialogando de igual para igual com os andares de cima.
Talvez não seja errado ser otimista e, com Rushkoff, "tocar o futuro".

E-mail: ccalligari@aol.com

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