São Paulo, domingo, 6 de outubro de 1996
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A gramática de Beavis e Butthead

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE BERKELEY

Não é difícil falar com Douglas Rushkoff. É suficiente contatar sua home-page na Internet (http://www.levity.com/ rushkoff/index10.html) e de lá escrever um e-mail. Rushkoff, embora ocupadíssimo pela entrega iminente do manuscrito de um romance, "The Ecstasy Club", trocou com a Folha a seguinte conversa eletrônica.
Folha - O que mais impressiona em seu livro é a inversão radical da tendência nostálgica que parece inevitável na maioria dos escritos sobre o mundo atual e particularmente sobre os jovens de hoje. "Playing the Future" é uma espécie de convite para o futuro. O título, aliás, poderia ter uma tradução perfeita em português: "Tocando o Futuro", como se toca uma música e como se toca a vida.
Douglas Rushkoff - De fato, o título original do livro era "As Crianças do Caos", mas o editor achou meio apavorante. A idéia do título, assim como está agora, era, acredito, dizer que o futuro é navegável e que navegar nele pode se parecer muito com o brincar.
É sonhando nostalgicamente que a gente fica preso ao passado. Dá um gosto doce na boca, que serve para hipnotizar as pessoas na complacência. É engraçado, pois querer voltar aos bons velhos tempos é como querer voltar a ser criança e, em geral, quem quer voltar não respeita muito as "crianças".
Folha - Você não apresenta seu livro como se fosse dirigido aos pais. Mas ele poderia ser pensado assim, como um guia para os pais de adolescentes, hoje. Se você quisesse se endereçar aos pais dos "screenagers", com seus medos, a paixão narcísica com a qual querem que suas crianças sejam exatamente como eles etc., o que você gostaria de lhes dizer?
Rushkoff - Não enderecei o livro especificamente aos pais, pois, não tendo filhos e não tendo uma especial formação psicológica, quem sou eu? Mas o que gostaria mesmo de dizer aos pais é que deveriam olhar duas vezes para a cultura de suas crianças antes de condená-la como bobagem. A maior parte das coisas que elas fazem, por mais superficiais que pareçam, são de fato tentativas de quebrar uma programação social que lhes é imposta, de expressar visões novas e otimistas de um futuro possível ou fabricar as comunidades que lhes foram negadas. Beavis e Butthead são um curso de gramática das mídias, as gangues de jovens são tentativas certamente extraviadas, mas sérias, de ter uma experiência comunitária, as raves são um ritual espiritual etc.
Muitos pais, infelizmente, reagem negativamente à simples idéia de que poderia haver algo de valor na cultura dos adolescentes.
Folha - Há dois momentos de sua análise que apreciei particularmente. Quando você indica que os valores perdidos que lamentamos não são os valores da família, mas os valores comunitários. Também quando você considera o fenômeno das gangues como uma expressão da procura de uma comunidade. Mas é um pouco difícil pensar em uma gangue urbana como modelo comunitário. Talvez estas práticas carreguem consigo algo de reativo, não só de inventivo, e por isso podem ser completamente estéreis.
Rushkoff - O lado reativo é o resultado da opressão; é uma doença, se você prefere. Se você não consegue respirar, pode tossir para abrir a garganta. Tossir não é a forma ideal de respiração, mas de algum modo é um remédio. Assim as gangues de rua podem não ser a melhor forma de interação, mas se reuniram porque para estes jovens não há absolutamente nenhuma outra forma de comunidade disponível. Não digo que as gangues sejam uma coisa boa -só digo que não são o sintoma de uma violência maléfica, mas de uma aspiração comunitária bem maior.
A única coisa que gostaria que as pessoas fizessem é ver que há algo mais importante detrás da superfície de atividades aparentemente destrutivas e horrorosas.
Folha - Seu discurso sobre a complexidade do mundo com o qual lidam os "screenagers" é um discurso linear, portanto, de adulto. Como eles receberam o seu livro?
Rushkoff - Eles não precisam de meu discurso mais do que uma cultura indígena precisa de um discurso linear sobre suas práticas. Somos nós, os adultos lineares, que precisamos colocar as atividades em um contexto linear. Não sei se você se dá conta de que a maioria dos adultos proíbe seus filhos de olhar certos programas de televisão, de dançar de certas maneiras, de escutar uma certa música, de brincar com computadores etc. Isto, porque não entende o que eles fazem, o que são as várias mídias que contam para os jovens ou como eles interagem com elas. Quanto à segunda parte da pergunta, só sei que a maioria das pessoas que gostou de meu livro são pessoas jovens, entre 16 e 35 anos.
Folha - Um a priori desfavorável aos jovens é acompanhado quase sempre de um a priori tecnofóbico. A tecnofobia de hoje pode não parecer muito diferente da do século 19, salvo que, acredito que você diria, os tecnófobos do século 19 resistiam contra a destruição de valores comunitários pela industrialização. E os tecnófobos de hoje estariam se opondo a algo que pode nos devolver algum tipo de comunidade cibernética. Como o mundo cibernético pode produzir um tipo de espaço comunitário?
Rushkoff - A Internet sozinha não pode substituir a sociedade comunitária que foi atacada pela industrialização e a péssima urbanização e suburbanização. Mas ela pode nos oferecer ao menos a oportunidade de entrever o que perdemos. Neste sentido, o espaço midiático fornece um tipo de remédio para uma sociedade que perdeu a capacidade de comunicar consigo mesma. É só um pouco de eletrônica. Mas é melhor do que nada. Poderia ensinar de novo às pessoas como falarem uns com os outros -sobretudo aos brancos ocidentais, que gostam de um lugar limpo, seco e sem riscos para interagir.
Quanto à tecnofobia, as pessoas estão tão acostumadas às formas das mídias tradicionais, que não conseguem imaginar que a tecnologia pode lhes oferecer capacidade de se expressar, porque sempre foi usada para oprimir ou programar. Será triste se as pessoas não conseguirem modificar seu pensamento quanto a isto. Agora mesmo, as pessoas que têm as rédeas na mão rezam para que nos recusemos a aproveitar esta nova tecnologia. Querem que fiquemos com medo e assim retomemos deles o controle da informação.
Folha - Uma coisa que você apenas menciona é o uso de drogas pelos "screenagers".
Rushkoff - Escrevi bastante sobre o uso de drogas pelos jovens e os "ravers" em meu livro "Cyberia". Não pensei que este fosse o livro certo para voltar a falar desta questão. Queria sobretudo analisar tendências da cultura pop que são próprias à "época do caos". Francamente, mesmo se penso que alguns agentes químicos são "cool", os estados de espírito que eles oferecem são geralmente os que os jovens já têm. Os anos 60 foram um período importante de crescimento, e os psicodélicos ajudaram a curar em nós uma doença social profunda, assim como as drogas curam um indivíduo de sua doença física. As pessoas e os fatos que apresento neste livro, a cultura dos jovens de hoje, mostram os resultados de algumas destas primeiras explorações.

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