São Paulo, domingo, 6 de outubro de 1996
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'Globo Repórter' mostra a Rússia e ilumina o Brasil

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A melhor coisa num russo é a má opinião que ele tem de si mesmo". Não foi por acaso que o crítico Roberto Schwarz pinçou essa frase do romance "Pais e Filhos", do escritor russo Ivan Turgueniev, para usá-la como epígrafe de seu capítulo sobre a elite brasileira, tal como é retratada nas "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis.
A frase sugere que há um enorme ar de família entre a Rússia e o Brasil, a começar pelas dimensões continentais e pela situação periférica no circuito do capitalismo. A despeito de todas as diferenças históricas, há nos dois países o sentimento de um certo déficit em relação ao Ocidente civilizado, um orgulho nacionalista e ao mesmo tempo uma vergonha com o próprio país. Uma alegria que não se encaixa na frieza da vida burguesa e ao mesmo tempo uma tristeza que decorre exatamente da consciência desse desajuste.
A diferença entre Rússia e Brasil é de densidade histórica. Na primeira, o atraso surge como tragédia; no segundo, aparece como farsa. Um país produz Dostoiévski e o balé Kirov, o outro Machado de Assis e o Carnaval.
Tudo isso ficou de certa forma latente no programa "Globo Repórter" da penúltima sexta-feira, cujo tema foi justamente a vida da população e os dilemas históricos da Rússia contemporânea.
Há alguns anos a Globo talvez caísse no clichê anticomunista. Hoje, correria o risco de cair no lugar-comum do país governado por um gorducho bonachão que gosta de tomar uma birita e agora está enfartado. Mas não foi o que aconteceu. O que surgiu através das reportagens de Carlos Dorneles foi um país complexo, que, mal saído do fantasma de um passado opressor, já se vê jogado numa euforia que tem o clima de fim de festa. Festa da qual só poucos (os espertalhões) sairão ilesos.
Mas vejamos de perto algumas passagens do programa.
Numa cena cortante, senhoras de 60, 70 anos estão enfileiradas nas calçadas, próximas às estações de metrô. Vendem suas próprias roupas e objetos pessoais. Uma delas oferece um par de sapatos a R$ 4,00. "Para quê", pergunta o repórter. "Para comprar comida", responde ela, constrangida e revoltada com a pensão de R$ 30,00 mensais que o governo lhe dá por ter passado a vida inteira na lavoura.
Vítima do comunismo? Do capitalismo? Difícil responder.
Em outra cena vemos um ex-funcionário público e ex-membro do PC que em poucos anos se transformou num próspero empresário do setor de turismo. "Você era comunista?", indaga o repórter. "Nunca fui", responde ele. Usava a carteirinha do partido porque com ela obtinha facilidades pessoais. Em suma, um espertalhão de carteirinha, um típico representante de uma classe ascendente num país de miseráveis.
São chamados pela população de "novos-russos". A definição que lhes dá uma senhora é a seguinte: "Têm mais ou menos 30 anos, sempre andam de terno, parecem inteligentes, mas são brutos e nunca falam com estranhos".
No contraste entre novos-ricos e novos-pobres, o programa vai entrando no país real, que por sua vez vai ingressando no capitalismo pela porta dos fundos: a economia é controlada por uma máfia, que domina o comércio do petróleo, o mercado imobiliário e o jogo ilegal.
A face epidérmica dessa "nova economia" são as fachadas da Pizza Hut, cujo mau gosto descartável parece desafiar as construções suntuosas da época dos czares e os escombros da era comunista.
Para onde vai esse país?, pergunta o "Globo Repórter". A resposta é evasiva, mas profundamente marcada por um ar sombrio, uma pesada nuvem de pessimismo. Aqui nos separamos da Rússia, com nossa incurável doença infantil chamada otimismo.

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