São Paulo, segunda-feira, 7 de outubro de 1996 |
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Kazuo Ishiguro usa inspiração kafkiana em "O Desconsolado"
BERNARDO AJZENBERG
Só isso pode explicar a resenha de sua autoria publicada nesta Ilustrada em 25 de agosto passado sobre "O Desconsolado", livro mais recente do autor nipo-britânico Kazuo Ishiguro. Resumidamente, a história criada por Ishiguro é a de um pianista de fama internacional chamado Ryder que chega a uma cidade de nome e local indefinidos onde dois dias depois deverá fazer um recital e se reunir com representantes locais. Tal cidade vive uma crise profunda de identidade, coletiva e individualmente, e o pianista é solicitado a todo instante por moradores a interferir em problemas de ordem pessoal. Ao final, acaba não cumprindo a agenda previamente estabelecida. Em seu texto, Inoue desanca a obra, na qual enxerga apenas uma "misturada de fatos e personagens", com diálogos "desencontrados", "incoerência geral", tendo alguns personagens comportamento "impertinente, intempestivo e extravagante", e por aí afora. Basicamente, o que incomoda Inoue, no livro, é o que ele chama de "discrepâncias com o que seria possível". Velocidade do elevador Como exemplo, cita com ironia a conversa entre Ryder e o carregador de malas Gustav enquanto sobem de elevador do térreo do hotel ao andar onde o pianista se hospedaria. Inoue calculou o quanto essa conversa demoraria -15 minutos-, e afirma que isso "nos leva a perguntar qual a altura desse prédio ou qual a velocidade do elevador". Conhecido internacionalmente por "Um Artista do Mundo Flutuante" e "Os Vestígios do Dia" (este último adaptado para o cinema), Ishiguro já demonstrou ter pleno domínio da técnica narrativa realista, por assim dizer, e é evidente que no seu quarto livro procurou, apesar do sucesso dos anteriores, subverter ousada e conscientemente o modelo com o qual trabalhava. E esse deveria ser o ponto de partida para uma análise da obra. Onde Inoue vê comportamento impertinente ou intempestivo, há na verdade a expressão literária da incapacidade do indivíduo de passar da pantomima habitual ou medrosa ao gesto simples de fato necessário na relação com o Outro. Onde vê diálogos incoerentes, desencontrados, discursos longos e complicados, expressa-se na verdade a impossibilidade dos personagens de enfrentarem seus assuntos de outro modo que não seja pelas bordas, revelando nisso, entre outras coisas, a hipocrisia que costuma residir por trás de uma polidez excessiva. O comportamento do próprio Ryder, doente de incomunicabilidade, incapaz de dizer não, incapaz de controlar sua própria agenda, é aflitivo, asfixiante. Como uma verdadeira obra de arte, em certa medida, deve ser. A graça de "O Desconsolado" está justamente aí: nos diálogos aparentemente incoerentes, nos cenários sem lógica visível, de inspiração claramente kafkiana, na passagem de um tempo que não tem nada a ver com o relógio do leitor (são 490 páginas, mas a história não tem mais do que dois dias), nas falas intermináveis mas habilmente construídas que nos introduzem em um universo onírico, criado propositada e firmemente pelo autor, desde que saibamos de fato nos entregar a ele como leitores de ficção e não de um tratado sócio-psicológico. Nesse sentido, pouco importa, na verdade, se, pela sua quantidade de palavras, uma conversa como a citada acima não poderia acontecer no intervalo entre o térreo e um andar qualquer de hotel. Importam sim as palavras ditas ali, suas consequências, seu encadeamento estranho e original. Não por acaso, Ishiguro encaixa essa conversa logo nas primeiras páginas do seu livro. Trata-se de um convite, como se ele dissesse: "embarque comigo, leitor". Nisso se aproxima, aliás, do norte-americano Paul Auster, o qual, assim como Ishiguro, transita num terreno intermediário entre o puro entretenimento e a chamada alta literatura. Comentando seu livro "Mr. Vertigo", cujo protagonista é um garoto que levita, quase voa, Auster o classifica de realista e argumenta que, para encará-lo assim, basta ao leitor admitir como possível, na ficção, a "questão da levitação" ("Magazine Littéraire", dezembro de 95). Com "O Desconsolado" é a mesma coisa. Devemos deixar de lado as noções de tempo e de espaço a que nos habituamos na vida real e usufruir os paradoxos saudáveis que a obra nos oferece. Estamos falando de literatura, não de manuais técnicos. E o livro de Ishiguro não mereceria ser "queimado" aos olhos dos leitores brasileiros, ao menos do modo leviano como o foi por Ryoke Inoue. Muito pelo contrário. Texto Anterior: Oasis e Stones duelam na feira Próximo Texto: Octavio Paz declara amor pela Índia Índice |
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