São Paulo, terça-feira, 8 de outubro de 1996
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Eleição tem cheiro de fraude e psicose coletiva

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Faz cinco dias e já não lembro. Foi uma espécie de pesadelo rápido: votar, sair, fugir. Na mesma noite da eleição, já tarde, me telefonaram. Queriam saber se eu pretendia escrever -"falando mal"- de um tal "poeta", conforme fulano "poeta" contara e sicrano "poeta" espalhara o fuxico.
Como tem gente psicótica no mundo, pensei, acordando com a pergunta intrometida. Fiquei entre gargalhar e me irritar. "Poeta". A palavra soava detestável. A gente, desprezível. Psicóticos desocupados.
No dia anterior -véspera da eleição-, parecia fraude o que acontecera em São Paulo. A Justiça eleitoral concedeu direito de resposta ao candidato Celso Pitta (PPB) para responder a acusação de má gestão das verbas municipais. Na véspera da eleição! Na véspera, quando já estavam proibidos comícios e propaganda.
Ah, claro: "não há impedimento à veiculação de direito de resposta em qualquer data", informou o presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Marco Aurélio de Mello.
Resultado: o candidato Celso Pitta passou minutos, em horário nobre em rede de televisão, em plena véspera da eleição, fazendo a mais descarada propaganda eleitoral. Usou alguns segundos para o dito "direito de resposta" e só. O resto foi pura propaganda do espertíssimo malufismo paulista.
Bastava pensar um pouco para concluir que aquilo estava errado, que eleição, fraude e abuso de poder econômico são uma só e mesma coisa. Em nome da lei, tratam todo eleitor como um imbecil manipulável.
Mas era a democracia, a preparação da chamada "festa cívica". O novo sistema de voto era todo "clean", modernizado na máquina limpa e ligeira, todo antifraude. Ao menos na aparência, eliminou-se a fraude. Mas o motorista de táxi me disse que não confiava na máquina, que "não tem nem cara de computador".
A festa cívica não deixa de ser um festival de desconfianças. Nunca se confiou em nada mesmo. Alguém me perguntou, também com desconfiança, se Marco Aurélio de Mello não era "aquele" da família Collor.
A questão é de raiz: como se a outra fraude, a fraude estrutural, continuasse, perpetuada na galeria de nomes manchados, na cara de homens balofos, truculentos, ou de homens magros, carecas, mentirosos.
Votei, mas é quase como se não me lembrasse, vendo agora a eleição a partir do skyline de uma cidade estrangeira. Meu voto perdeu-se na psicose coletiva, grudou-se na cola do adesivo -o povo enganado fazendo propaganda eleitoral gratuita em vidros de carros.
Exercício de irrealidade, votar. Como se o ser político, civil, contasse quase nada. Afinal, assegurar o que nessas psicóticas metrópoles superpopuladas ou nas pequenas cidades acanhadas? Sentir-se o perdedor número um pelas ruas do mundo, onde você não conta e tanto faz ganhar, perder.
Lembrar do lenço no seu pescoço, ou do anel de estimação no seu dedo, e reduzir o mundo a um único pleito e lugar, aquele em que o candidato é você, mas ao amor de alguém -única importância da vida.

E-mailmfelinto@uol.com.br

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