São Paulo, terça-feira, 8 de outubro de 1996
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Privilégio exaurido

ANDRÉ LARA RESENDE

O ano passado, depois de horas em fila indiana ao longo de uma estrada a caminho do circuito de Silverstone, na Inglaterra, Bob Wolleck, piloto francês, estrela de primeiro time das corridas de longa distância apesar dos 52 anos de idade, suspirou e lamentou: "E pensar que há menos de 30 anos corríamos nas estradas, assustando galinhas, sob o olhar fascinado das crianças camponesas".
Lembrei-me da observação de Wolleck ao assistir as campanhas para a Prefeitura de São Paulo. Foram a evidência definitiva da gravidade do problema do transporte nas grandes cidades. Diagnosticado como a grande preocupação do paulistano, os candidatos subiram e desceram nas preferências de acordo com a percepção e a avaliação dos eleitores de suas propostas para resolver o inferno do trânsito.
Abrir avenidas, construir pontes, viadutos e túneis foi durante muito tempo o símbolo da boa administração. Governar é construir estradas, foi a máxima que até pouco pautou o bom governo.
As grandes obras públicas, e as obras viárias em particular, estão profundamente associadas à idéia de um governo dinâmico e modernizador.
O governo Kubitschek que trouxe a indústria automobilística, construiu estradas e levou a capital para uma cidade criada para o automóvel está firmemente estabelecido na memória nacional como o paradigma do bom governo e do progresso.
A estrada de ferro fascinou o século passado, mas nada comparável ao impacto do automóvel neste século. Invenção que tudo transformou, a cidade e a vida foram redefinidas.
O sopro de otimismo, a industrialização e o progresso que se seguiram à Segunda Guerra estiveram intimamente associados ao automóvel.
É possível imaginar a sensação de poder e de liberdade proporcionada pela posse do automóvel antes dos engarrafamentos. Um belo carro esporte, estradas vazias e ar puro. Extraordinário privilégio! Não é de se admirar que a publicidade continue a insistir numa imagem hoje rigorosamente incompatível com a realidade.
Tornar o privilégio acessível ao cidadão comum foi a locomotiva da industrialização e do progresso na segunda metade do século. Infelizmente, o modelo dá sinais de exaustão.
De sonho a pesadelo em pouco mais de três décadas. Para viabilizar o crescimento da indústria e o acesso do automóvel a um número cada vez maior de pessoas, as cidades foram transfiguradas e o pedestre expulso.
As cidades americanas, das quais Los Angeles é provavelmente o caso mais representativo, são hoje aglomerados em torno de auto-estradas. A experiência de viajar pela Flórida ou pela Califórnia é única: uma rede de auto-estradas onde de tempos em tempos se vê os McDonald's, os Howard Johnson, os Wall Mart e as outras marcas que se repetem numa deprimente monotonia.
Mesmo na Europa, onde se procurou preservar as cidades, os sistemas de transportes coletivos são mais desenvolvidos e a circulação dos carros restrita em algumas cidades, os engarrafamentos urbanos são a regra e as estradas estão saturadas. É hora de repensar o uso do automóvel, mas repensar o uso do automóvel é repensar a economia, a cidade e o modo de vida.

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