São Paulo, quinta-feira, 10 de outubro de 1996
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O mito da empresa transnacional

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Uma das coisas mais impressionantes é o contraste colossal, verdadeiramente gigantesco, entre a literatura especializada e a propaganda ideológica com que somos bombardeados via meios de comunicação de massa. Esse contraste aparece de forma particularmente intensa no debate sobre a famosa "globalização", em especial na questão do caráter supostamente transnacional das grandes corporações.
No artigo da semana passada, comentei que documento de autoria de um dos diretores do Banco Central, divulgado recentemente pela Presidência da República, toma como ponto de partida uma versão Mickey Mouse da "globalização" e das empresas "transnacionais", identificadas como agentes de uma avassaladora transformação da economia mundial.
Esse documento é um bom exemplo da campanha de desinformação a que estamos continuamente expostos aqui no Brasil. Segundo o ideólogo governamental, as corporações internacionais teriam adquirido uma "nova identidade supranacional", com "amplas e profundas" implicações para o comércio exterior e para os fluxos de investimentos diretos.
Bem. Toda ideologia de sucesso, por mais vagabunda, tem sempre algum substrato de realidade, alguma conexão com os fatos que lhe confere certa plausibilidade.
Não há dúvida de que nas últimas décadas aumentou a proporção de firmas que operam em âmbito internacional. A maioria das corporações industriais e financeiras dos países desenvolvidos mantêm uma parte dos seus ativos produtivos no exterior.
Daí não segue, entretanto, que se possa falar no predomínio de empresas "globalizadas". Como observou Jacob Gorender, em trabalho para o Instituto de Estudos Avançados da USP, o conceito de "empresa transnacional" não é aplicável no sentido sugerido pelo termo, isto é, para designar empresas que supostamente transcendem a esfera nacional.
Em geral, as empresas internacionais não se desgarram dos Estados nacionais dos países onde têm origem. Constituem, ao contrário, uma questão de política internacional para esses Estados.
Quem tiver dúvidas a esse respeito que recorde, por exemplo, a atuação do governo dos EUA no episódio recente do contrato Sivam. Foi um verdadeiro rolo compressor: sucessivas visitas oficiais, telefonemas de Clinton, pressões as mais variadas, tudo para garantir a vitória do consórcio comandado pela empresa americana Raytheon.
O governo da França não deixou por menos. Também fez forte campanha em prol da Thomson, empresa francesa concorrente da Raytheon.
A mensagem é óbvia: enquanto governos da periferia se deixam embalar pela retórica da "globalização" e das empresas "transnacionais", os governos dos países desenvolvidos continuarão fazendo tudo o que estiver a seu alcance para ajudar suas empresas, na América Latina e em outras regiões.
A atitude das grandes empresas internacionais parece se caracterizar pela ambivalência. Por um lado, pressionam os governos dos seus países de origem para obter apoio econômico e político em suas operações no exterior.
Por outro, constituem a "base material" da ideologia da globalização. Valem-se dela para criar um clima propício à remoção de barreiras contra a sua ação internacional, tirando evidentemente partido do arrivismo ou da venalidade das camadas dirigentes dos países mais atrasados.
Em países como o nosso, onde as informações internacionais relevantes demoram a chegar, não é difícil propagar mitos politicamente convenientes. A opinião pública é levada a acreditar nas coisas mais fantásticas e não toma conhecimento de dados fundamentais.
Não fica sabendo, por exemplo, que cerca de 70% a 75% do valor adicionado nas grandes corporações dos países desenvolvidos é produzido na base nacional dessas empresas. Ou que apenas 10% a 30% da atividade tecnológica dessas empresas acontecem em subsidiárias estrangeiras, conforme dados apresentados por Paul Hirst e Grahame Thompson em livro publicado recentemente na Inglaterra.
Pesquisa anterior, de Pari Patel e Keith Pavitt, da Universidade de Sussex, já mostrara que as grandes empresas concentram as suas atividades de pesquisa e desenvolvimento nas suas bases nacionais. As firmas das principais economias do mundo -Alemanha, Japão e EUA- realizam menos de 15% da sua atividade tecnológica fora do país de origem. A produção de tecnologia, concluem os autores, constitui um caso importante de "não-globalização".
Outro trabalho recente, de autoria de Robert Wade, também da Universidade de Sussex, lembra que a grande maioria das corporações mantêm a maior parte dos seus ativos, empregados e decisões estratégicas no país de origem.
Em 1991, apenas 2% dos membros dos conselhos de administração das grandes empresas americanas eram estrangeiros. Nas companhias japonesas, observou a revista "The Economist", diretores estrangeiros são tão raros quanto lutadores britânicos de sumô.
Por essas e outra razões, Wade conclui que as multinacionais deveriam ser caracterizadas como "firmas nacionais com operações internacionais". É minúsculo, escreve ele, o número de empresas que podem ser consideradas "globais", no sentido de não revelarem preferência por um país em particular.
Mas, enfim, num país em que quase ninguém dá atenção ao que acontece no resto do mundo e onde o debate sobre questões internacionais se reduz, em geral, à mera reprodução dos mais surrados chavões, é pouco provável que estudos e pesquisas como esses tenham a repercussão que mereceriam.

E-mail: pnbjr@ibm.net

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