São Paulo, sexta-feira, 11 de outubro de 1996
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Para onde vamos agora

LUIZ RONCARI
interessante perceber, quase 30 anos depois de 68, como o tempo do vivido vai se transformando em objeto de diferentes tipos de representações ficcionais e históricas. A geração que entrou na universidade nesse período e viveu ou acompanhou de perto os acontecimentos que o agitaram pode colocar-se agora, ao mesmo tempo, na posição de objeto e sujeito do conhecimento. Se fica difícil ainda um julgamento frio de episódios e situações que exigiam tanto envolvimento, é mais que necessário o distanciamento, não só para uma apreciação mais objetiva, como para evitar a nostalgia e a sensação de que tudo passou e o sonho acabou. Se a pergunta que fazíamos na época era bastante pragmática e revelava dúvidas apenas quanto aos meios, tomando emprestado o título do livro de Lênin, "O Que Fazer?", a pergunta de hoje é quanto aos objetivos, revela a nossa perplexidade e parece ter sido inspirada por Drummond, "E agora,... para onde?".
Trocamos a pergunta que só queria afirmar as certezas do revolucionário, pela mais sincera do poeta, que fala do desconcerto do indivíduo diante dum tempo anestesiante. De certa forma, felizmente, pois se a troca exigirá bem mais reflexão e experiência próprias, evitará também muitos enganos. Penso que os melhores esforços dessa volta ao passado são os compreensivos e os que têm em vista o presente e o futuro, e não um "revival" sentimental.
Se aqueles fatos, vistos de hoje, nos parecem quase uma aventura de pequenos grupos de militantes, na verdade só ocorreram porque uma parcela ponderável da opinião nacional e internacional os apoiava. Havia uma conjunção de elementos dessas duas esferas que endossava a violência ou a guerra como uma extensão legítima da política (e não uma visão desta como uma possibilidade de superação dos conflitos de modo não agressivo). Internacionalmente, a guerra do Vietnã simbolizava uma luta heróica entre David e Golias, justificando plenamente a violência do pequeno para se libertar do império do gigante.
Durante no mínimo 10 anos, de 65 a 75, acompanhamos avidamente pelos jornais as notícias daquelas batalhas sangrentas entre dois exércitos tão desigualmente armados: um, utilizando o que havia de mais avançado e pesado em termos de equipamento mecânico e eletrônico: tanques, helicópteros, jatos, radares, bombas sofisticadas; e outro, usando basicamente fuzis, morteiros e sandálias havaianas. Além da ideologia e dos argumentos políticos, havia uma adesão espontânea e torcida natural pelo mais fraco, que, contrariamente ao que normalmente acontece, dessa vez vencia. Nunca fora tão bom e gratificante estar do lado dos vitoriosos. A luta no Vietnã, pode-se dizer, marcou fundo o imaginário da época. Não era necessário partilhar de um espírito militarista para surpreender-se muitas vezes imaginando-se lutando ao lado dos "vietcongs".
No plano nacional, os militares enraizavam-se no poder, compunham suas bases de apoio e definiam seus projetos para o país. Entre outras coisas, tomavam para si o papel de tutores da sociedade, que, nas suas avaliações internas, devia ter sido considerada irresponsável. O sentimento que se vivia na época era o de que tínhamos sido infantilizados. Depois dos intensos anos políticos da primeira metade da década de 60, vínhamos gradativamente perdendo direitos e sofrendo um processo impositivo de quem usurpava para si o direito de escolha e decisão, gerando em todos esse sentimento de infantilização, de quem tinha sido declarado irresponsável. Tais fatos criavam como contrapartida um forte sentimento de revolta.
Dentro desse quadro, não era tão difícil criar associações e transpor métodos de resistência e luta armadas de um lugar para outro -do Vietnã e de Cuba para o Brasil-, como forma de reagir ao domínio e à opressão, ainda mais quando a "violência justa" era apoiada por muitos setores da opinião e seus respectivos discursos. Essa tendência era tão forte, que qualquer voz dissonante na oposição ao regime, e havia muitas, que ponderasse ou levantasse dúvidas sobre a propriedade dos métodos naquela conjuntura, era logo identificada como reformista ou coisa pior. Já no tempo eram visíveis muitos dos seus limites, mas abafava-se a crítica.
Quando Marighella e depois Lamarca despontaram no cenário como líderes da luta armada contra o regime e iniciaram as suas ações, distanciaram absurdamente as chamadas vanguardas de qualquer base social que pudessem aspirar. Desse modo, ainda que tivessem carisma e demonstrassem liderança, nenhum dos dois mostrou aquelas qualidades que o padre Antonio Vieira dizia que distinguia o profeta: olhos de águia e patas de vaca, ou seja, ver longe, mas não andar mais depressa que os seguidores, arriscando-se perigosamente a distanciar-se e isolar-se. Os dois, embora carregados de razões, erraram em todas as avaliações: não foram capazes de prever a capacidade de reação e repressão do poder, a velocidade dos passos a serem dados e o verdadeiro campo de luta onde enfrentar o inimigo. Só por volta de 74, depois da refrega, ainda meio atordoados, é que começamos de novo a nos reunir publicamente nas redações da imprensa alternativa e nos diretórios do MDB de Pinheiros, da Vila Madalena e da Bela Vista.
Marcelo Rubens Paiva situa a ação do seu livro, "Não És Tu, Brasil", naquele tempo, inícios dos anos 70. A idéia base do livro é mostrar como uma trajetória individual foi atravessada por alguns episódios do período, mais precisamente, pela passagem de Lamarca e seu grupo pelo Vale do Ribeira. O autor pretendeu reunir dois tipos de materiais, que pediam duas narrativas diferentes, numa só, aproximando-se, talvez sem o querer e saber, do campo difícil e minado de um tipo de romance histórico, cujo melhor modelo seria "A Cartuxa de Parma", de Stendhal, donde poucos saíram ilesos e não se chamuscaram.
Um primeiro tipo de material era o da sua própria experiência de adolescente no Vale, que informa e sustenta o modo confessional do herói-narrador em primeira pessoa. É assim que se apresenta o "romance", um narrador relatando sua própria vida numa cidade do Vale, Eldorado, como um dos netos de um latifundiário do lugar. Uma rapaziada folgada que ali se reunia para passar as férias de verão e barbarizava o pedaço, as galinhas e as filhas dos camponeses e moradores locais. Estripulias de meninos ricos levados, que então descobriam a competição, o sexo, o amor, a bebida, um pouco de livros, a sensibilidade machucada. O que se sente é que o relato prefere ficar mais na descrição da experiência do que na sua problematização, o que talvez teria permitido ultrapassar as confissões de um adolescente.
O outro tipo de material era o resultado de uma pesquisa histórico-jornalística sobre os episódios Lamarca. Este deveria resultar numa crônica romanceada que estabelecesse a verdade dos fatos a partir das diferentes posições e opiniões. Ele reúne documentos das organizações e das forças repressivas, panfletos, recortes da imprensa, bibliografia, entrevistas, algumas inéditas no Brasil, e depoimentos de sobreviventes. A intenção mais funda talvez fosse mostrar como um adolescente, vivenciando ainda sua subjetividade em formação, viveu e sentiu alguns episódios que marcaram o período. Teríamos então aí o contraste explorado pela narrativa moderna entre o tempo subjetivo e o objetivo, entre o indivíduo e a história, sofrendo aquele as asperezas e a indiferença desta. Como o autor optou pelo romance e não pela crônica histórica, o foco deveria centrar-se na experiência particular e, para que a história não se transformasse num apêndice deslocado ou pano de fundo e cenário, ela só deveria interessar na medida em que participasse ou fosse importante para a definição do indivíduo que a vivia.
Porém o autor não se satisfez ou não considerou o bastante concentrar-se no processo de formação ou deformação de um sujeito na "história" -se é também que podemos tomar esta mais pelos fatos episódicos que por um movimento profundo de mudança. Ele procurou um modo de incluir a crônica inteira, de modo que o "romance" ficou um híbrido do relato de uma experiência com a verdade possível da passagem de Lamarca pelo Ribeira. Reuniu assim dois materiais que pediam focos e tratamentos distintos, forçando-os a se integrar numa mesma ordem de registro. O mesmo narrador que conta a sua vida, acha um jeito de incluir a crônica.
O relato é feito para interlocutores diferentes ao longo da narrativa, porém só aparentemente presentes e diversos, já que suas interferências são mínimas ou nenhuma, pois, se eles variam, o relato não oscila, continua sempre o mesmo. É como se o autor pedisse um ouvido qualquer emprestado, sem que houvesse atrás dele uma "pessoa" (uma outra experiência) capaz de interferir pela sua presença na modulação da narrativa (como o interlocutor de Riobaldo, no "Grande Sertão", sem dizer nada, faz com que ele reflita sobre o modo de contar e mude a ordem dos fatos!). Os interlocutores estão lá só para justificar a narração no seu modo coloquial, e ela acontece como se bastasse a si mesma, fosse por si interessante, independentemente da intervenção do outro.
O relato só varia quando o narrador deixa de falar de si para fazer a crônica -aí então é obrigado pela matéria a trocar o tom confessional pela narrativa dos fatos, descrevendo-os, romanceando-os e alternando seus movimentos com comentários. Esse trânsito soa artificial, quebra a pretendida continuidade ou organicidade da narrativa e parece mais um arranjo. Ela é ainda entremeada por colagens, não de fragmentos, mas de documentos na íntegra, cumprindo com isso uma função também de dossiê do processo que reconstrói o episódio. O resultado final dessa composição híbrida e disforme lembra novamente a quimera do padre Vieira, só que invertida.

Luiz Roncari é escritor, professor de literatura brasileira na USP e autor, entre outros, de "Rum para Rondônia" (Siciliano).

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