São Paulo, sexta-feira, 11 de outubro de 1996
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O quadro e a moldura

LUÍS ARMANDO BAGOLIN

o livro "A Arte Brasileira", publicado originariamente por Gonzaga-Duque em 1888, constitui uma das primeiras tentativas de realização de uma história da arte brasileira alinhada às principais correntes estéticas deflagradas na Europa naquele momento. É curioso encontrar no interior do texto a coexistência de duas visões aparentemente antitéticas: a primeira, de natureza positiva, endereçada à produção da obra artística; e uma outra, mais pessimista, voltada para a formulação de uma hipótese capaz de sumarizar a nossa formação sociocultural.
Segundo Tadeu Chiarelli, organizador desta reedição, o conteúdo do livro é subdividido de modo a formar dois discursos diferenciados entre si, isto é, uma "Moldura" e um "Quadro". A "Moldura" é um breve relato de natureza histórica, visivelmente influenciado pela "Filosofia da Arte" de Hyppolyte Taine, e composta pelos capítulos "Causas" e "Conclusão". O "Quadro", compreendendo, por sua vez, os capítulos "Manifestação", "Movimento", "Progresso" e "Escultura", consiste numa série de relatos intentada como crítica de arte. Enquanto a "Moldura" nos oferece um relato pouco animador, uma vez que o "homem brasileiro" aqui é visto como o subproduto do cruzamento de diversas raças, por outro lado o "Quadro" possui algumas das mais belas críticas feitas a alguns de nossos mais importantes artistas do final do século passado, como Debret, Pedro Américo, Victor Meirelles, Rodolfo Amoedo, Castagneto, Almeida Jr., Belmiro de Almeida, entre outros.
É particularmente interessante perceber no texto a atitude de Gonzaga-Duque em relação à querela presente desde meados do século passado entre os "acadêmicos" e os seus opositores, em geral representados por uma elite abolicionista e republicana, desejosa de uma arte de feições "nacionais". Um dos mais ferrenhos porta-vozes desta oposição foi Angelo Agostini, chargista e litógrafo de primeira hora, que através de sua incisiva "Revista Ilustrada", defendeu um grupo de jovens pintores paisagistas sob a orientação do pintor itinerante alemão Georg Grimm. Segundo Agostini, era preciso que "os artistas abandonassem os métodos anacrônicos da Academia e se voltassem para a captação da paisagem física e humana do país".
Na outra ponta deste debate encontramos a proposição firmada por Araújo Porto-Alegre, diretor da Academia Imperial de Belas Artes entre 1854 e 1857, para quem apenas a adoção de "cânones invariáveis", baseados nas "doutrinas especiais dos grandes mestres" garantiria a constituição de uma "Escola Brasileira de Pintura". Gonzaga-Duque evita opinar acerbamente sobre a polêmica, tentando assumir uma postura de confortável imparcialidade: "O método que procuro seguir", comenta, "consiste em considerar as obras humanas, em particular as obras de arte, como fatos e produtos cujos caracteres é preciso notar, e cujas causas é preciso pesquisar; nada mais".
O autor consegue posicionar-se criticamente, sem incorrer em agravos de natureza política. Podemos, assim, encontrar em seu texto tanto o louvor da pintura histórica, gênero por excelência das grandes academias européias desde o século 18, quanto os conselhos inflamados em prol da libertação dos modelos acadêmicos. Em tais momentos o pensamento gonzaguiano trai a influência não mais de Taine, mas da "Estética" de Veron, para quem o artista "é livre, absolutamente livre no seu domínio, sob a condição exclusiva de ser sincero em grau absoluto, de não querer exprimir senão idéias, sentimentos e emoções que lhe sejam próprios, e de não se modelar a ninguém".
Assim, por exemplo, na descrição da "Batalha de Avaí", de Pedro Américo, Gonzaga-Duque menciona que o artista optou por "abandonar as cediças linhas da composição acadêmica", compondo "o sujeito como melhor entendeu, para transmitir mais diretamente a impressão recebida". Não obstante, é interessante perceber como o seu discurso assume requintes literários a fim de persuadir-nos a encarar a composição para além das categorias estanques do academicismo/antiacademicismo.
A respeito do mesmo quadro temos: "É a guerra com toda a sua hediondez, com todos os seus crimes, com todas as explosões da sua barbaridade. O soldado em luta é uma fera que conquista, faminta, a posse da preia... Ataca enraivecido porque é atacado sem generosidade, mata para não ser morto, e na refrega, no acanhado terreno em que está, não sofreia a cólera para medir os gestos". A exemplo do desencadeamento de ações, sinalizado pela narrativa, a confecção da pintura de Pedro Américo também se dá mediante uma fatura larga, dramática e original.
Ao assumir o papel de "advogado do diabo", Gonzaga-Duque consegue construir uma análise fortemente identificada com a constituição da obra enquanto forma de existência plástica autônoma, deixando as questões temáticas num plano secundário. A preocupação com características da personalidade dos artistas, muitas vezes de foro íntimo, contribuem para a criação de uma clima atraente ao leitor-espectador, convidado à inquirição caso a caso.
O autor consegue dessa forma aglutinar em seu livro todos os principais ingredientes da moderna crítica de arte e, em particular, está atento para a sutil distinção entre ética e estética. O capítulo conclusivo de "A Arte Brasileira", longe de constituir apenas uma visão negativa acerca de nossa formação cultural, poderia talvez ser lido como a definição de um sentimento fortemente enviezado no cenário artístico daquele momento como também no atual: "Em um país colocado nas atuais circunstâncias em que se acha o Brasil, só longos estudos e muita meditação podem elevar o artista à sua merecida posição e dar-lhe os elementos para a sua independência de pensar e agir".

Luiz Armando Bagolin é artista plástico e mestrando em estética e filosofia da arte na USP.

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