São Paulo, sábado, 12 de outubro de 1996
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"Alfredinho", o missionário que se vai

MARCELO RUBENS PAIVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Acabei de saber da morte de um amigo, Renato Russo. Aliás, "Alfredinho", como ele gostava de se apresentar.
Quando vinha a São Paulo, carregava no sotaque italiano. Nos chamava de "belo". Orgulhava-se de sua ascendência.
Nos conhecemos antes do sucesso. Ele, um brasiliense misterioso, meio punk sem ser, com a Legião Urbana explorando os espaços de São Paulo: Rose Bom Bom, Napalm, Carbono 14.
Um brasiliense sabia de mais coisas que nós. E Renato sempre soube de mais coisas que nós. Trocávamos opiniões sobre livros. Eu lia Camus, ele lia Dante. Eu lia Kafka, ele a "Bíblia". Eu o achava anacrônico. Ele me chamava de "niilista incorrigível". Eu o achava puritano.
Renato se sentia um messiânico, um catequizador. Primeiro, a palavra. Não usava máscara, figurino. Renato era Renato, dentro e fora do palco.
Provocávamos: "Alfredinho, compre outra roupa". Ele saía de casa de camiseta e jeans, e lá estava ele no palco com a mesma camiseta e jeans. Ele não precisava de artifícios, dominava como poucos a palavra.
Hospedava-se na casa da Fernanda Andrade, minha namorada. Havia um misto de euforia e desconfiança ante à abertura política e, consequentemente, ao renascimento do rock brasileiro.
Éramos quase garotos nos lançando às feras do showbizz. Não falávamos de contratos. Falávamos de um projeto coletivo: o desencanto. Éramos amargurados, só pensávamos em uma fórmula comum para exprimir nosso descontentamento.
Queríamos mudar o Brasil. Éramos socialistas. Éramos anarquistas. Na verdade, não sabíamos o que éramos. "Nasci em 62", o nosso lema (música do Ira). "Cadê o Socialismo?", cantava o Zero. "Ainda é Cedo", cantava Renato.
Renato quase não dividia suas impressões. Trancava-se no quarto, enxugava uma garrafa de uísque e só descia para contar piadas. Éramos cúmplices de um movimento que não sabíamos alçar. Queríamos o grande público sem perdermos a identidade. Tínhamos medo de sermos corrompidos pela fama.
Eu dava entrevistas com camisetas de bandas amigas. A Legião, com uma camiseta estampada "Feliz Ano Velho". Talvez fôssemos isso, saudosistas, órfãos de um mundo velho, com projeto, com História.
Quando eu ia a Brasília, me hospedava na casa do Dado. Era lá que ensaiavam, apertados num quarto de empregada sem acústica. A surpresa: começavam às 8 da manhã. Um pastor deve acordar antes do rebanho.
Eu ficava na cama, procurando decifrar o que Renato cantava. Renato era indecifrável. E quando eu saía do quarto, vinha com versos escritos num papel. "O que você acha?", perguntava. "Ainda é cedo", eu ironizava. Eu sabia, todos sabiam, que ninguém furava o bloqueio de sua loucura pessoal. Seu cérebro fervia, como o inferno de Dante.
Mas ele era doce, gentil. Era simples, sincero, com uma barba histriônica, os óculos quadrados, tudo fora de moda. Não se abalava com a quantidade de discos vendidos. Nem sabia o que fazer com tanto dinheiro.
Sua atenção estava voltada para o público. Sua vocação era liderar. Seus shows eram manifestações. O que mais o afligia era saber se o estavam entendendo. Mas nada mudaria, o que ampliava a sua (a nossa) solidão.
Conseguiu não ser engolido pelo sistema que tanto combateu. "Quando a esperança está dispersa, é a verdade que liberta", diz uma de suas últimas músicas. A esperança morreu, e Alfredinho resolveu seguir o mesmo caminho.

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