São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A formiguinha e o elefante

PAUL SINGER

Há ocasiões em que a genialidade da caricatura está menos na graça pretendida do que na que emerge involuntária e despercebidamente.
Na segunda página da edição de sábado último da Folha (28.9.96, p. 1-2) encontra-se uma caricatura de Glauco com dois quadros: no primeiro FHC excitadamente chama as pessoas para ver como a inflação está pequena, "do tamanho de uma formiguinha"; no segundo aparece FHC esmagado pelo elefante que representa o "déficit".
Moral óbvia da história: o presidente exibe o que lhe é favorável, a inflação quase zerada, mas a celebração é estragada pelo "enorme" déficit. A ironia não pretendida está precisamente no contraste entre o déficit elefantino e a inflação quase microscópica: afinal, se a inflação é causada pelo déficit (essa a tese ilustrada por Glauco), como é que um déficit tão "esmagador" produz uma inflação tão insignificante?
É preciso acrescentar imediatamente que o contraste entre déficit e inflação, tão flagrante nos últimos meses, nada tem de espúrio. Nos últimos dez anos, déficits grandes "produziram" inflações pequenas e vice-versa. Exemplo do primeiro caso: em 1995, um déficit de 5% do PIB "gerou" uma inflação de somente 22,0%; em compensação, em 1990 um superávit fiscal (déficit negativo) de -1,3% do PIB teria "causado" 1.585,2% de inflação; e , no ano seguinte, um déficit igual a zero seria "causa" de uma inflação de 475,1%; em 1993 e 94, também houve superávit fiscal e as inflações foram, como todos recordam, estupendas.
De modo que temos uma tese "científica" totalmente desmentida pelos fatos. Se o déficit for a causa final ou fundamental da inflação, então a inflação brasileira anterior ao Real não teve causa. E os déficits que de fato ocorrem não têm, nem de longe, as consequências inflacionárias que assustam tanta gente.
É o caso presente: em 1996, o déficit rompe barreiras e desmente previsões, enquanto no "front" dos preços chega a haver deflação. A formiguinha e o elefante de Glauco são monumentos à credulidade em pretensas verdades científicas, por mais que os fatos as desmintam.
Na realidade, a tese científica é que, se um déficit fiscal for coberto por emissão de moeda superior ao crescimento da demanda pela mesma, então é possível que haja inflação. Possível, mas não certo, pois a ampliação da demanda, causada pela emissão excessiva, pode também ser satisfeita por um aumento da oferta de bens e serviços.
Em outras palavras, déficit é causa de inflação apenas em condições muito bem definidas, que em geral não se verificam no Brasil há muito tempo. Entre 1987 e 1994, houve déficit negativo (superávit) ou igual a zero em todos os anos, menos em 1992, quando o déficit operacional atingiu 2,2%, do PIB e foi coberto por expansão da dívida pública. Somente em 1995, como vimos, houve um déficit mais alentado, que também foi coberto por empréstimos feitos ao governo. Por isso, a inflação foi cadente no ano passado e continua caindo este ano, apesar do déficit.
Economistas um pouco mais sofisticados replicarão que o preocupante não é tanto o déficit, mas o crescimento da dívida pública, causado pela sucessão de déficits. Na realidade, a dívida pública aumenta muito mais em função da acumulação de imensas reservas cambiais -da ordem de 10% do PIB- do que pelos déficits, que só emergiram em 95 e 96. E pela elevada taxa real de juros, que onera os orçamentos públicos e é a principal causa dos déficits.
Seja como for, o preocupante não é o tamanho da dívida pública, mas o fato de que ela se compõe de débitos de curto prazo, o que impõe o seu contínuo rolamento. A recusa dos "aplicadores" em adquirir títulos de prazos mais longos é uma herança de longa crise inflacionária pela qual passamos; muita gente ainda teme que a grande inflação poderá voltar em breve.
O irônico na atual situação é que o temor dos aplicadores resulta das notícias sobre o déficit fiscal e o crescimento da dívida pública. Esse temor tem efeitos deletérios para a economia nacional: encurta os prazos de vencimento dos títulos governamentais e eleva a taxa de juros sobre os mesmos. E reforça a campanha pelas reformas constitucionais, pela privatização das estatais produtivas e dos serviços públicos, na suposição que só assim se alcançará o ajuste fiscal. Quando, na realidade, é tão normal que os governos tenham déficits que sejam cobertos por empréstimos como o é para empresas ou famílias cujos rendimentos crescem.
Déficit só é problema quando a entidade que nele incorre não tem crédito para cobri-lo. O neoliberalismo triunfante quer nos fazer crer que déficit público é um mal em si que sempre acaba em mais inflação. Uma crença infundada, mas que de tanto ser repetida adquire ares de óbvia. A ponto de inspirar uma caricatura que, pretendendo ilustrá-la, acabou por desmascará-la.

Texto Anterior: Os sem-cheque; Na mira; O ovo e a galinha; Pé no freio - 1; Pé no freio - 2; Engolindo verbas; Do ramo; Morte arrastada; Múmia no aeroporto; Tomando a iniciativa; Com categoria; Contra-ataque; Prendendo a respiração; Receita no ar; Na parada; Diferença de classe; Entregando o ouro; Rio de dinheiro; Engarrafada
Próximo Texto: Furo tributário
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.