São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996
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A teoria da independência

TEG GOERTZEL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um dos aspectos mais intrigantes na carreira de FHC é a consistência de suas visões teóricas a despeito de aparentes mudanças em suas opções políticas. Sua formação acadêmica foi marcadamente marxista, e, entretanto, ele não deixa de advogar a privatização e o livre-mercado. Não haveria dificuldade em entender isto se FHC tivesse abandonado seu radicalismo juvenil. Mas ele reafirma tudo o que escreveu e insiste em dizer que, dadas as mesmas circunstâncias, reescreveria tudo outra vez. E sua recusa em se desculpar por seu passado ou por seu presente irrita seus oponentes em ambos os extremos do espectro político.
À esquerda, o cientista político José Luiz Fiori sugere que "muito embora Cardoso tenha alcançado proeminência como sociólogo marxista nas décadas de 60 e 70, pode-se argumentar que sua trajetória política não apresenta grandes rupturas -ainda que suas primeiras obras contenham uma veemente e bem-fundada condenação do curso que tomou como presidente" (1). Fiori denuncia Cardoso como joguete da elite econômica internacional -agora de feição neoliberal e neocolonialista. Mas ele não acredita que Cardoso tenha abandonado suas teorias marxistas: pelo contrário, ele estaria pondo seu marxismo a serviço de seus novos mestres.
À direita, o cientista político americano Robert Packenham assina um livro belicoso, no qual denuncia Cardoso como um ideólogo cujas teorias são impermeáveis à comprovação empírica. Mas o próprio Packenham admite que "ninguém exemplifica as mudanças no pensamento marxista melhor do que Cardoso" (2). Ele apóia FHC politicamente e diz que teria votado nele se fosse brasileiro; mas nem assim sente-se capaz de perdoar-lhe a incapacidade de criticar seu passado marxista.
Mas o marxismo não é uma crítica do capitalismo e um anúncio da revolução socialista? Sendo assim, como seria possível usá-lo em defesa da nova ordem mundial capitalista? O que significa ser marxista numa era pós-comunista, na qual ninguém mais acredita numa economia socialista administrada pelo Estado?
A verdade é que os escritos de Cardoso mostram que ele tem sido bem mais coerente em suas teorias e em suas opções políticas do que muitas pessoas gostariam de supor. Cardoso desenvolveu uma crítica do marxismo num artigo publicado na França já em 1969 (3). Nesse tempo, ele ensinava na Universidade de Paris, mais especificamente no campus de Nanterre -um foco de ativismo estudantil onde muitos pensavam que o capitalismo estivesse em seu leito de morte e a revolução marxista já a caminho.
Cardoso discordava. Ao contrário de muitos marxistas que, diante do fracasso das previsões de Marx, lançavam o ônus sobre supostos erros de avaliação política, Cardoso percebeu que o núcleo da teoria econômica de Marx continha falhas substantivas. O marxismo simplesmente não tinha como explicar as conquistas sociais da classe operária na Europa ou a divisão do mundo capitalista em países centrais e periféricos. A grande força de Cardoso foi sua capacidade de encarar a realidade, mesmo quando esta se chocava com a teoria. Por que, então, Cardoso não abandonou o marxismo? Em muitos sentidos, foi isso mesmo o que ele fez. Mas, a seus olhos, Marx ainda conservava seu valor, se não como economista, então como espécie de filósofo do conhecimento. Pois Cardoso reteve da obra de Marx o modelo de análise dialética, que combinava pesquisa econômica formal e sensibilidade para análises sóciopolíticas.
Ao enfatizar a dialética enquanto elemento-chave do pensamento marxista, Cardoso simultaneamente adicionava uma forte dose de voluntarismo a seu marxismo. Cardoso acreditava que os resultados políticos não eram mecanicamente determinados, mas dependiam de decisões estratégico-políticas tomadas pelos líderes, ao passo que muitos marxistas tratam o marxismo como doutrina determinista que prediz mudanças inevitáveis a partir das necessidades funcionais do sistema econômico. Cardoso não é o único marxista a rejeitar essa interpretação funcionalista de Marx -o filósofo marxista Jon Elster explorou essa questão em profundidade (4).
Ao contrário de muitos sociólogos, Cardoso não dirigiu sua obra para a busca de generalizações científicas universais. Seu interesse recaiu sempre sobre a realidade de períodos históricos específicos -de conjunturas, portanto. (...)
Essa concentração sobre realidades emergentes, sobre verdades próprias a um dado período histórico pode ter sido uma herança da família de Cardoso. O feijão-com-arroz da vida política foi parte das conversas de jantar em sua infância; seu pai era general, advogado e congressista. Cardoso tinha uma melhor percepção de como funcionavam as coisas do que muitos de seus colegas acadêmicos, imersos em teorias, mas sem qualquer contato pessoal com a tomada de decisão nas altas esferas políticas.
A geração de Cardoso foi profundamente moldada pelo movimento de 1964. Muitos esquerdistas de então deixaram-se tragicamente levar pela crença de que a crise política era causada pelo colapso do capitalismo dependente; pensavam que as únicas alternativas eram a revolução socialista ou a estagnação socioeconômica. Na verdade, havia uma terceira possibilidade: desenvolvimento capitalista contínuo combinado a reformas sociais democráticas. Se esta última possibilidade não se concretizou, a culpa recai antes sobre a crise política que sobre a crise econômica. Os reformistas moderados, que tinham voto e apoio popular suficientes para impor um compromisso, deixaram-se arrastar por extremistas de um lado e de outro, todos contrários à reconciliação.
Em sua análise do movimento de 1964, Cardoso deixou claro que o desfecho não fora resultado inevitável das forças econômicas: "Não penso que 1964 estivesse inscrito inexoravelmente na lógica econômica da história. Antes penso que o processo político joga um papel ativo na definição do curso dos acontecimentos. Ou seja: se é certo que a inflação, o acerbamento da luta de classes, a dificuldade de manter o ritmo de expansão capitalista nas condições socioeconômicas prevalecentes durante o governo Goulart radicalizaram as forças políticas e moveram as bases institucionais do regime, o movimento insurrecional foi uma das saídas possíveis e não a única, como se interpretaria a partir de uma visão economicista da história" (5).
Cardoso não precisava abandonar o marxismo por uma outra teoria porque sua interpretação de Marx permitia-lhe incluir todos os fatores que reputava importantes. Ainda que seus pensamentos aproximassem-no mais e mais do "mainstream" da ciência política, ele prosseguiu emocionalmente ligado às suas raízes marxistas. Numa entrevista publicada em 1978, Cardoso disse a seu interlocutor:
"Se você quer saber qual o meu ato de fé, como pessoa, eu sou favorável a acabar com o mundo dos exploradores e explorados! Mas isso é um ato de fé, que tem talvez uma importância biográfica, uma importância moral. Mas o importante é desenvolver uma atitude política, e não uma atitude atitude moralista. Importante é saber quais são as forças sociais que estão se movendo numa dada direção. Importante é introduzir o ato de fé na conjuntura" (6).
A preocupação de Cardoso com o fluxo de eventos e com a possibilidade de direcioná-lo em termos de futuro próximo é algo que o distingue de seus pares acadêmicos, cuja interesse está voltado para a formulação e a comprovação de teorias. Robert Packenham, por exemplo, passou anos testando e criticando um conjunto de idéias que ele e outros mais chamam de "teoria da dependência", para finalmente chegarem à conclusão que a teoria -especialmente na versão do "desenvolvimento no subdesenvolvimento"- está errada. Esta última versão, associada sobretudo aos trabalhos de André Gunder Frank, predizia que, ao menos enquanto permanecessem atrelados ao capitalismo multinacional, os países do Terceiro Mundo empobreceriam mais e mais. Sua única chance estaria em romper com o sistema capitalista mundial e enveredar por um caminho de desenvolvimento socialista.
Packenham e muitos outros têm estatísticas suficientes para demonstrar que essa teoria estava errada. Cardoso diria que o mundo mudou: no século 19, os capitalistas extraíam matérias-primas brutas da América Latina para então processá-las na Europa; hoje, as companhias multinacionais transferiram boa parte de sua produção para países do Terceiro Mundo, e isso permitiu que alguns deles se desenvolvessem rapidamente.
Pois Cardoso jamais acreditou na "teoria da dependência" no sentido em que Packenham e outros cientistas sociais usam o termo "teoria". Para Cardoso, a dependência das nações do Terceiro Mundo era um tópico de estudo importante, mas não uma teoria a ser testada e retestada. Já em seus tempos de estudante em São Paulo, seu mentor Florestan Fernandes ensinou-lhe a usar teorias sociais como uma caixa de ferramentas, da qual se retiram as ferramentas mais adequadas a uma dada tarefa. Nos anos 70, longe de entrar em crise, a economia brasileira expandia-se em moldes capitalistas. A questão premente era imaginar uma transição pacífica de volta à democracia. O marxismo não tinha com que ajudar, de modo que Cardoso voltou à caixa de ferramentas e de lá tirou novas idéias. Ao longo do processo de democratização, citou frequentemente o pensador italiano Norberto Bobbio; em seu discurso inaugural no Senado, fez citações não de Marx, mas de Max Weber, o eminente sociólogo da burocracia.
Seu hábito de "ler de tudo" proporcionou-lhe um amplo conhecimento interdisciplinar, algo mais a diferenciá-lo de muitos acadêmicos presos a especializações estreitas. O presidente americano Harry Truman disse certa vez que gostaria de encontrar um economista maneta, porque todos os que conhecia tinham o hábito de dizer "por um lado isso, por outro lado aquilo". Cardoso resolveu o problema tornando-se seu próprio economista maneta. Muitos políticos entendem o bastante de sociologia ou ciência política para tomarem sozinhos suas próprias decisões sobre como lidar com a opinião pública ou com questões administrativas; mas poucos realmente conhecem a ciência econômica moderna a ponto de poderem argumentar com seus conselheiros econômicos. (...)
Em última análise, FHC conquistou a presidência porque tinha uma solução para o problema nacional mais urgente, enquanto a oposição não tinha nada. Sua formação de cientista social capacitou-o a entender e usar os conhecimentos econômicos mais recentes sobre hiperinflação e seus remédios, assim como a formar suas próprias opiniões sem necessidade de assessores.
Atualmente, a grande questão é saber se FHC terá o cacife político para levar a cabo as reformas necessárias para sustentar o sucesso já obtido. Se for entravado pelo Congresso, os pessimistas terão tido razão. A hiperinflação pode retornar, e o Brasil pode outra vez ser vítima das doutrinas radicais que oferecem muitos bodes expiatórios, mas nenhuma solução. Por terem dado a presidência a um professor do calibre de Cardoso, os brasileiros têm tido que ouvir algumas verdades desagradáveis, em especial no que diz respeito à necessidade de cortar garantias burocráticas e os altos gastos governamentais. Há sempre a tentação de rejeitar seu discurso professoral em favor da retórica sedutora do populismo. A força de Cardoso sempre esteve em sua capacidade de encarar realidades desagradáveis -uma lição difícil de seguir.
Comparados aos norte-americanos, os brasileiros têm um notável respeito por intelectuais e devem estar relutantes em voltar aos políticos tradicionais. Cardoso já realizou mais que qualquer um de seus predecessores pós-militares -aliás, um páreo sabidamente nada difícil. Cardoso entrará para a história como o presidente que preparou o Brasil para o século 21, o que não deixa de ser um feito condizente com um homem que iniciou a carreira esforçando-se por adaptar o marxismo do século 19 à realidade do século 20.

Notas
1.Nacla - "Report on the Americas", maio de 1996
2."The Dependency Movement: Scholarship and Politics in Development Studies" (Harvard University Press, 1992), pág. 216.
3."La Contribution de Marx à la Théorie du Changement Social", in "Marx et la Pensée Scientifique Contemporaine" (Mouton, 1969)
4."Marxism, Functionalism, and Game Theory", in "Theory and Society", vol. 11, 1982
5. "O Modelo Político Brasileiro e Outros Ensaios" (Difel, 1972), pág. 66
6."Democracia para Mudar" (Paz e Terra, 1978), pág. 68

O texto acima foi extraído de um ensaio maior do autor.

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