São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996
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O "reino" de 20 anos

FRANCISCO DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na metade do seu mandato, preparando-se para tentar a reeleição, com o que teremos 40% do "reino" de 20 anos dos sonhos do primeiro-amigo -aquele que diz o que o presidente gostaria de dizer, mas o decoro aconselha o uso do boneco de ventríloquo-, o governo FHC já não é uma caixa de surpresas. Apesar de tão velho na maioria de suas práticas fisiológicas, de tão brasileiramente repetitivo na desfaçatez de seus acordos políticos, como reitera ainda na manhã do sábado seguinte à eleição, recomendando o voto no candidato de Maluf, em São Paulo, nas dobras dessa repetitividade e desse anacronismo esconde-se a mais letal política anticidadã e antinacional que o país conhece, desde os dias de Collor de Mello, de quem, afinal, é o seguidor consequente.
Consequente porque "orgânico" no sentido forte de que FHC é uma liderança capaz de aglutinar e dar sentido ao projeto de hegemonia que as classes e grupos dominantes no Brasil acalentam há tanto tempo, mas dele estão órfãos há pelo menos 60 anos, desde que a Revolução de 30 deslocou a hegemonia cafeicultora. Desde então, industrialização, urbanização, metropolização, emergência do proletariado e das novas classes médias, num processo turbulento e incessante, não acomodaram interesses, não dando lugar à transformação da dominação em hegemonia; as ditaduras ao longo do extenso período revelaram sempre essa precariedade.
A grande realização do governo FHC é o Plano Real ou, mais simples e verdadeiramente, a estabilidade monetária. Embora tenha sido concebido e começado a ser executado no governo Itamar, FHC é seu grande mentor e executor político. Do ponto de vista de sua concepção econômica, embora seus autores se vangloriem de originalidade, ela pertence ao conjunto de receitas do "mainstream", aplicadas nas economias da periferia do capitalismo (com o obséquio do presidente, outrora teórico da dependência). Isto é, trata-se de uma terapêutica baseada numa ancoragem da moeda nacional no dólar; daí o enorme esforço exigido para atrair capitais, que torna instável a economia, com os riscos que a crise mexicana já comprovou, que a estagnação argentina confirma e que a enormidade da dívida interna pública brasileira apenas reitera: para tentar esterilizar a emissão monetária correspondente aos dólares que entram, o governo retira liquidez da economia, vendendo títulos da dívida pública interna, com o que se voltou à famosa "ciranda financeira".
Essa "ancoragem" não é sem consequências; com ela se vai, de fato, a autonomia da moeda nacional. Contraditoriamente, pois, o principal trunfo e, a rigor, a única realização do governo FHC, transforma-se no seu principal empecilho: a ausência de autonomia monetária. O governo, pois, não tem outra coisa a fazer senão cuidar permanentemente de enfiar dólares goela abaixo dos contribuintes, pois estes pagam o preço da dívida interna pública sob a forma dos "escorchantes" (palavras do presidente) juros. Que roubam o espaço, no orçamento, de quaisquer outros gastos: o serviço das dívidas públicas, interna e externa, consome mais de um terço dos gastos totais do governo, impedindo qualquer gasto social...democrata.
Este é o mais importante sentido da verdadeira reforma do Estado, além daquela que é conduzida pelo Ministério da Reforma do Estado e da Administração. Em primeiro lugar, o desaparecimento da moeda nacional, o que, de cambulhada, liquida o próprio Estado. Em segundo lugar, a reforma do orçamento: o lugar ocupado pelos serviços das dívidas externa e interna, os compromissos de sua securitização, os limites estabelecidos como indicadores da boa saúde financeira do Estado e da economia (indicadores do déficit, sua relação com o PIB etc.), constituem rigidezes crescentes que impedem a administração pública de administrar. O caso argentino já é o próprio Estado nacional como simulacro: a lei argentina proíbe qualquer manipulação da relação de paridade entre o peso e o dólar, vale dizer, a lei impede que os políticos eleitos -entre os quais o presidente- para administrarem a economia nacional, a administrem. O Brasil ainda não chegou a tanto, mas as crescentes obrigações internacionais, a fórmula adotada para pegar carona na globalização, nos conduzirão ao famigerado porto seguro argentino.
A reforma do Estado completa-se pelas privatizações. O governo FHC justificou as privatizações pelo déficit das empresas estatais que alimentavam o déficit do governo. Confundiu a opinião pública misturando as empresas que formavam o núcleo consistente do setor estatal produtivo com um sem-número de empresas privadas socorridas na UTI da socialização das perdas. As primeiras formavam o setor que possibilitava ao governo ter política econômica e, mais precisamente, ter política industrial, ao lado de política de rendas; além disso, a grande maioria das primeiras sempre foi, consistentemente, lucrativa. As privatizações ocorridas até agora não aliviaram o déficit público, à medida que não abateram a dívida pública interna mobiliária; ao contrário, como o próprio governo financia a compra das estatais, a privatização pode até ampliar o déficit e a dívida. Tal foi o caso, para mais uma vez confirmar a regra, da recentíssima privatização da malha sudeste da RFFSA (Rede Ferroviária Federal S/A): 30% no ato e o restante em suaves prestações, durante os próximos 30 anos! Além disso, as privatizações não melhoraram a competitividade, nem baixaram o grau de concentração da propriedade do capital na economia. Pelas aquisições realizadas, deram lugar a uma maior concentração do capital, tal como sugere o próprio processo do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) contra o grupo Gerdau, que abocanhou praticamente todas as siderúrgicas ex-estatais de aços não-planos.
Há um aspecto extremamente relevante sistematicamente posto de lado no debate sobre as privatizações. Ele se refere à delegação de poderes que o Estado brasileiro fez a muitas de suas principais empresas. Controlando vastas áreas, incluindo reservas indígenas -caso da Petrobrás e da Vale do Rio Doce, em todo o vale amazônico e na área do projeto Carajás-; cidades inteiras -Volta Redonda, caso da ex-Companhia Siderúrgica Nacional, Ipatinga, da Usiminas, Tubarão e, em certa medida, a própria Vitória do Espírito Santo, outra vez no caso da Vale, Campos, que virou uma espécie de "administração" da Petrobrás-, estão no meio de intensos conflitos étnicos, de terras, de propriedade, do garimpo à grilagem, do contrabando à pacificação de tribos inteiras. Numa palavra, as empresas estatais estão no centro das novas configurações sociais surgidas em muitas partes do país e, na ausência delas, certamente, a violência privada já teria eliminado a mais remota alusão ao monopólio exclusivo da violência, apanágio do Estado moderno. Pode o Estado brasileiro simplesmente delegar essas funções a empresas privadas, deixando entregue, agora, aos azares do mercado, questões graves como todas as que cruzam os territórios e as relações sociais especiais que se teceram tendo por base uma "empresa estatal"?
A cidadania não saiu lesada apenas em seus direitos de contribuinte, único aspecto pelo qual a imprensa se interessa; mesmo desse estrito ponto de vista, as cifras que medem o duro esforço de poupança forçada da sociedade, carreadas através de longos anos de coerção estatal, agora transformada em propriedade privada, são simplesmente escandalosas. Além disso, são também direitos da cidadania dispor de empresas estatais que interfiram na formação dos preços, na estrutura do poder econômico, na redistribuição de renda, na qualidade de vida, na administração do espaço, na preservação do meio-ambiente. As privatizações, realizadas na "bacia das almas" dos grandes negócios, não são apenas maus negócios para o Estado brasileiro; constituem sobretudo um conjunto de medidas anticidadania.
O sentido geral do governo revela-se no tratamento da questão trabalhista. Com uma dureza que, no limite, flertava com o culto fascista da implacabilidade -o que não combinaria com a imagem de permanente bom humor do presidente e com seu estilo quase populista- o governo FHC deu o recado na greve dos petroleiros: trabalhadores podem reclamar de salários, mas não podem utilizar seus "recursos metodológicos de classe" para discutirem reformas constitucionais, que são atributos exclusivos das instituições políticas. O governo FHC não apenas quis mostrar-se cumpridor da lei: quis mostrar que utilizaria a força para que os trabalhadores soubessem que seu projeto de hegemonia não admite contestações. Foi mais adiante: ao vetar, sem nenhum motivo explícito, uma lei do Congresso -votada por seus aliados- que anistiava os petroleiros, FHC outra vez deu o odioso recado. Nisto, mostra-se um digno seguidor da senhora Thatcher: quebrar, a qualquer custo, a espinha dorsal do movimento dos trabalhadores, para que eles não ousem se colocar como alternativa política.
Todas as "reformas" -de resto, uma infame apropriação do significado histórico desse conceito, que confunde o discurso político e não é ingênua- vão no perverso sentido da destituição de direitos da cidadania e particularmente de trabalhadores. O longo trabalho realizado para a construção de uma esfera pública não-burguesa está ameaçado. Os direitos "relutantemente reconhecidos" transformaram-se, da noite para o dia, em privilégios: o cidadão virou vilão. A Constituição de 1988, que o presidente votou -e até onde se sabe, votou conscientemente, e o paradoxo é que o PT foi o único partido a, equivocadamente, recusá-la-, transformou-se no mais grave obstáculo ao desenvolvimento. É inescapável o sentido claramente antiautonomia de cidadãos e trabalhadores que o governo FHC encarna; estes, uma vez mais na história brasileira, são reduzidos a objetos de manipulação política. No lugar, pois, dos direitos, as carências, as necessidades. Referindo-se ao reajuste que os funcionários públicos federais pleiteavam, em janeiro/fevereiro deste ano, o ministro da Reforma do Estado e da Administração disse que eles estavam bem e portanto não precisavam de reajuste. Haviam recebido o suficiente no ano anterior. Isto é, lei e direitos, nada valem. Só valem as necessidades. De volta ao estado de natureza, trabalhadores. As girafas do zoológico agradecem a companhia.
Projetos no sentido de "flexibilizar" o mercado de trabalho estão sendo enviados ao Congresso. Ao arrepio da constatação de que 50 anos após a CLT não mais que 50% dos assalariados possuem carteira de trabalho, segundo os dados do próprio Ministério do Trabalho. Além disso, como as pesquisas internacionais demonstram, não existe nenhuma correlação positiva entre mercados de trabalho desregulamentados e ganhos na produtividade do trabalho e na competitividade das empresas, sendo o contrário o verdadeiro.
O mesmo se passa no terreno da política social. Atingido pelos cortes orçamentários, objeto do culto ao bezerro de ouro do equilíbrio, regressão ao Estado doméstico pré-keynesiano, o gasto social voltou ao remanso das carências movidas pela caridade pública. O programa da Comunidade Solidária não é outra coisa senão uma retórica técnica a serviço do fisiologismo e da política de clientela. O gasto social que se inscreve contra a autonomia das organizações civis da sociedade, heterônomo, ancorado num conselho falto de representatividade, composto precisamente de estrelas do espetáculo, longe dos olhos da sociedade civil. A política como espetáculo e o espetáculo como política.
O governo FHC não se encerrará, melancolicamente, no seu primeiro mandato ou no segundo que pleiteia -e certamente conseguirá, valha a caneta, não é Boris?- ou no "reino" de 20 anos do primeiro-amigo, como um fracasso econômico, embora esse risco não esteja ausente. Como Perry Anderson bem lembrou em publicação recente ("O Pós Neoliberalismo", 1996, Rio, Paz e Terra), o neoliberalismo é um tremendo êxito ideológico e um rotundo fracasso econômico, medido pelas taxas de crescimento do capitalismo em período longo. Isto pode acontecer também no Brasil. A perspectiva mais imediata, entretanto, é a de êxito. Empresas internacionais virão para cá, como já o fazem desde os anos 50, e seguramente se obterão taxas de crescimento acima da média mundial. A diferença estará no aprofundamento das desigualdades sociais e no vilipendiamento da cidadania, reduzida a escombros e a um espectro de mercadoria, pois nem já é funcional para o processo do capital. Além disso, o "reino" colherá a tempo o que plantou: a total degeneração do Estado, a violência privada solta nas ruas, desinibida pela falência do Estado mínimo, máximo para os banqueiros. A direita já se desinibiu, Maluf já mudou os antigos óculos de tartaruga, serviço cujo crédito se deve muito mais a FHC do que a Duda Mendonça, como os adoradores do mercado supõem. Este duro cenário, entretanto, não se realizará. A cidadania estará nas ruas, para impedir o "reino" dos sonhos do primeiro-amigo e... do seu ventríloquo.

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