São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996
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A reinvenção da cidadania

FERNANDO CONCEIÇÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Aos 70 anos, completados em maio, o geógrafo e professor da USP Milton Almeida dos Santos é o centro de uma rara homenagem acadêmica no Brasil, país que tradicionalmente não cultiva o hábito de reconhecer quem trabalha, como ele mesmo diz.
Durante o evento, três livros estarão sendo lançados, um do próprio Milton Santos, "A Natureza do Espaço - Técnica e Tempo, Razão e Emoção", e dois outros em sua homenagem, todos editados pela Hucitec.
Milton Santos é, hoje, um dos intelectuais brasileiros mais respeitados em todo o mundo. Com 55 anos de magistério, esse baiano da região da Chapada Diamantina, nascido em Brotas de Macaúbas, iniciou sua atividade intelectual aos 15 anos, lecionando no mesmo colégio interno em que foi aluno por dez anos, o Instituto Bahiano de Ensino, em Salvador.
Cursou a faculdade de direito por uma questão de prestígio, "porque minha família decidiu que devia me educar para ser um dos homens de mando", conta. Seus pais eram professores primários em cidades do interior. Sua avó, verdureira. "Até hoje, o cheiro de salsa me faz lembrar de minha avó, que me visitava no internato, pé no chão, com o balaio, depois que acabava de vender."
Com o movimento militar de 64, Milton Santos ficou preso por 90 dias num quartel do Exército em Salvador. À época, era secretário de Estado e responsável pela redação dos principais discursos do governador, Lomanto Júnior. Presidia a Comissão de Planejamento Econômico da Bahia e, com uma equipe de técnicos, tinha "algumas propostas correspondentes à nossa posição de homens de boa vontade", como a criação de um imposto sobre a fortuna.
Ao sofrer um pré-infarto e um derrame facial, Santos saiu da prisão para um hospital. A convite de colegas franceses, no Natal de 1964 deixou a Bahia direto para a França. No exílio peregrinou por vários países na Europa, África, América do Norte e América Latina.
Aos 50 anos, quando resolveu retornar ao Brasil, teve como justificativa o nascimento do seu segundo filho. "Só mesmo um baiano para querer trocar a Europa ou os Estados Unidos para ter filho na Bahia", teria dito a ele Fernando Henrique Cardoso, quando soube de sua decisão em Paris.
Depois da morte em agosto passado de seu primogênito, que também era professor da Universidade Federal da Bahia, cancelou diversos compromissos pelo mundo.
Leia a seguir trechos de sua entrevista à Folha, no apartamento em Alto de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, onde mora com sua segunda mulher, Marie Hélène, que conheceu há 29 anos.
*
Folha - Um dos temas a ser abordado nesse encontro internacional sobre a sua obra é a globalização e o espaço do cidadão. Qual é o espaço do cidadão num mundo que se diz globalizado e de que tipo de cidadão se está falando?
Milton Santos - A vontade dessa globalização perversa a que estamos assistindo é reduzir o papel do cidadão. É transformar todo mundo em consumidor, usuário e, se possível, em coisa, para mais facilmente se inclinar diante de soluções anti-humanas.
Essa globalização por enquanto não leva em conta o homem. De modo que esse espaço do cidadão tem que ser recriado a partir dos níveis abaixo do mundo. Não é o mundo que vai criar o cidadão. O chamado mundo quer acabar com as cidadanias, mas cada nação e cada espaço e cada cidade é que vão ter a força de recriar esse cidadão -que vai contribuir, creio eu, mais tarde, para sugerir uma outra globalização.
Eu acho que essa é a nossa tarefa no começo do século 21, porque, de repente, o atual século parece perdido. É a recriação da cidadania mediante uma outra globalização, horizontalizada e não verticalizada como a atual, na qual a vida não seja tributária do cálculo, mas haja espaço para a emoção -que é o que une os homens. Mas essa união dos homens do mundo inteiro passa pela produção de uma idéia de mundo feita em cada lugar.
Folha - Um mundo desse tipo não permitiria o surgimento de disputas de grupos cada vez menores, os acirramentos étnicos, aquilo que Hobsbawm apontava como guerras tribais, com o fim da bipolaridade Leste-Oeste?
Santos - Temos de ver isso dinamicamente. Nunca houve uma mistura de gente tão grande como a que se dá hoje não nos países, mas nas cidades. A cidade obriga todo mundo a viver junto, por conseguinte, a discutir todos os dias o seu futuro.
Então, a visão pessimista imagina que vai haver guerra. A outra visão, que não é pessimista nem é otimista, que é a visão dos fatos como eles se dão, mostra essa produção de uma efervescência extremamente grande em todas as cidades do mundo -Nova York, Paris, Londres, São Paulo e também Lagos ou Abidjã, que são lugares da criação do outro mundo a partir da presença comum, conjunta, de gente que vem de toda a parte. Isso é um sinal de esperança.
É evidente que o pensamento europeu é muito arredio à idéia de futuro. Os europeus têm enorme dificuldade de trabalhar com o futuro, e é nisso que os povos do Sul vão ajudar a recriar o mundo. Não somos povos lentos, somos aparentemente lentos, porque não dispomos da técnica, mas na realidade esse dinamismo do ponto de vista emocional que existe no Sul é a garantia da produção do futuro.
Folha - O sr. poderia fazer uma síntese do seu pensamento sobre a inserção do Brasil no mundo e a influência do mundo no Brasil? Além disso, o que diferenciaria a sua posição da do governo de Fernando Henrique Cardoso?
Santos - De início, a minha posição é muito próxima da de Celso Furtado. A chamada modernização não é algo apenas unilateral. O mundo descobre coisas novas, vem fazendo isso há séculos, descoberta incessante, que se acelerou com a expansão da ciência e da técnica. Mas cada país, em função do que ele pensa ser o seu destino nacional, toma o que quer desses da modernização correspondente àquele época.
É a primeira vez que alguns países, entre os quais o Brasil, decidem se alienar completamente da condução do seu próprio destino. Historicamente, nunca um país decidiu fazer, de maneira tão aberta e escancarada, a alienação à condução do seu próprio destino. Nenhum país aceita esse tipo de atrelamento a uma condução externa. Sobretudo quando ninguém sabe exatamente, como é o nosso caso hoje, o que significa tal mercado global, o que significa competitividade. São palavras extremamente fortes, porque repetidas muito barulhentamente pelas mídias, mas que não têm um conteúdo. Esse processo de entrega total, de recusa a ter um destino nacional passou a ser algo tão grosseiramente imposto aos países, que todas as pessoas que não pensam igual teriam que ser suprimidas.
Folha - O sr. acha que o presidente Fernando Henrique tem "alienado" o Brasil a esses interesses?
Santos - Não diria nesses termos, porque não sei o que se passa pela cabeça dele. Mas o governo dele, sim. As medidas tomadas já no fim do governo Itamar, possivelmente sob a inspiração dele, mostram isso.
Folha - Que medidas?
Santos - Há duas formas de trabalhar a questão. Uma é você pegar medida por medida, e dizer: "Bem, tal medida isso, tal medida aquilo". Eu prefiro pensar, por exemplo, no conjunto da política econômica do Brasil. É melhor jogar dezenas de milhões de brasileiros na pobreza do que dizer não ao Consenso de Washington, que é o ponto de vista central do aparelho de Estado brasileiro hoje, como na discussão da Previdência Social, por exemplo, na qual nós decidimos, quer dizer, em Brasília se decidiu -perdão, quem decide no Brasil decidiu- que a noção de solidariedade nacional não tem a menor importância.
Folha - Como o sr. vê a posição de outros intelectuais, não apenas Fernando Henrique Cardoso, mas, por exemplo, Alain Touraine, que de certa forma têm justificado algumas medidas do atual governo apelando para a idéia da necessidade de se inserir o país na nova ordem econômica mundial?
Santos - Só para a sua informação, parece que o Touraine mudou um pouco, recentemente. Eu não vi, mas alguém me disse que em um artigo recente ele começa a rever sua posição, debaixo da pressão muito forte feita por colegas dele na França.
Quanto aos intelectuais, a gente sabe que nunca houve uma crise tão grande dos intelectuais como hoje. O que eu acho muito grave no Brasil é que uma boa parte dos chamados intelectuais decidiu ser establishment. E você não pode ser ao mesmo tempo establishment e intelectual. Uma das doenças da intelectualidade brasileira é esse gosto por ser establishment.
O intelectual é a classe que está permanentemente criticando, de alto a baixo, a sociedade. O intelectual não bajula os poderosos do dinheiro, os poderosos do poder e também não bajula os pobres. O intelectual está disposto a criticar o intelectual, coisa que no Brasil é muito raro. E o intelectual está sempre criticando a si mesmo, está buscando. Os últimos governos brasileiros, e este governo atual, mataram as condições para esse tipo de comportamento. Quando se olha o panorama das universidades brasileiras, a gente tem total clareza desse processo eficaz de apagamento do intelectual, que tem muita dificuldade de "sobrexistir" no Brasil de hoje.
Folha - Como a chamada globalização afeta as universidades?
Santos - Creio que o processo de globalização, sobretudo para as universidades periféricas (se não tomarem cuidado), pode ser fatal para as universidades. Não estou dizendo com isso que elas deixem de parecer grandes, de ter uma grande produção chamada científica. Estou me referindo ao papel de conhecimento do presente e de vontade de penetrar no futuro, que deveria ser o trabalho da universidade.
Nos países do Terceiro Mundo quase não há universidades globais. A USP, que é a maior da América Latina, não é propriamente global. Porque as idéias criadas aqui não se impõem ao resto do mundo. O processo de globalização, dando enorme força ao mercado global, que tem um comando sobre a atividade acadêmica no mundo inteiro, atrela os pesquisadores a um modelo chamado global, mas que é global para algumas empresas e, por conseguinte, enfraquece a capacidade de descoberta e de crítica dos que participam da universidade.
No caso brasileiro a coisa é muito grave, porque as universidades, pelos seus corpos dirigentes, encorajam esse processo de submissão. A própria forma de avaliação da atividade acadêmica, o convite repetido e a pressão para parecer Norte, a começar pelo teor dos relatórios, podem levar a universidade a um processo de destruição a partir de dentro. Hoje a gente discute as ameaças externas à universidade e discute pouco as ameaças internas, que são muito graves.
Folha - Essas ameaças partiriam dos setores que dirigem a universidade?
Santos - Eles não têm consciência disso, o que também é grave. Essa falta de consciência vem do fato de as universidades estarem criando uma espécie de grupo dirigente permanente, espécie de buro-professores que se reproduzem e só pensam nisso, e cuja reprodução é independente da universidade que produz, trabalha, cria, pensa. Esse divórcio crescente entre uma universidade que quer pensar e uma universidade que quer mandar somente pode ter resultados terríveis para a vida acadêmica.
Folha - Como escapar disso?
Santos - Haveria uma solução: que tudo o que dependa da chamada política universitária ficasse nas mãos desses buro-professores. Mas que houvesse instâncias mais intelectuais que escapassem. O que porém está se dando é que essas próprias instâncias genuinamente intelectuais estão sendo igualmente tomadas pelos buro-professores, porque tudo se transforma numa espécie de moeda.
Acredito que uma das possibilidades para as universidades se abrirem a idéias mais verdadeiras estaria em que os partidos pudessem ter intelectuais. Não digo somente os de esquerda, mas também os partidos de direita. O que é delicado hoje na vida política do Brasil é que os partidos não querem mais ser políticos, são partidos eleitorais. Basta ver a mesmice da campanha para prefeito, aqui. Todos falam a mesma coisa, porque renunciaram a ser políticos. Atualmente estamos condenados ao pequeno debate, às pequenas postulações, à manifestação pública de rixas menores, que não têm qualquer papel educativo e por conseguinte atrasam o processo. A esquerda tem essa enorme dívida com o país, porque ela não tem sabido fazer o debate nacional.
As eleições se tornaram um ato de consumo eleitoral. Os candidatos são vendidos como produtos, e os eleitores processam a campanha eleitoral como um convite a consumir o seu próprio voto -e é o que fazem-, e isto está ligado ao tipo de regime que temos no Brasil, a democracia de mercado.
Folha - Recentemente o senhor recebeu em sua casa a visita de Gilberto Gil, que o entrevistou. Poderia falar sobre o que tratou a conversa?
Santos - A conversa foi sobretudo em torno de como melhorar, da parte dos intelectuais orgânicos, como é Gilberto Gil e, apesar de ser universitário, imagino que eu também seja, a capacidade analítica para produzir um discurso que possa ser base de um discurso político. Mesmo sem esse nome, já que todo discurso intelectual também é um discurso político. A idéia, que eu havia exposto numa conferência na Câmara Municipal de Salvador, quando Gil era vereador, é de que depois da era da tecnologia vamos entrar na era demográfica.
Folha - O que seria isso?
Santos - A era do homem, da população, das pessoas. E eu acho que nós já estamos entrando nessa era demográfica.
Folha - Mas sem jogar fora as conquistas da tecnologia?
Santos - Ah, é impossível, as conquistas da tecnologia são irreversíveis, como existência. O que a gente tem de reverter é a forma como elas são usadas. Nós vivemos hoje a era do dinheiro em estado puro, logo, a tecnologia toda é usada a serviço do dinheiro em estado puro. A idéia, então, é que toda essa parafernália tecnológica extraordinária seja utilizada a serviço do homem. E sob o comando do homem e não mais sob o comando das finanças.
Folha - Isto dependeria de quê?
Santos - Vai depender de que a universidade preencha o papel que desejamos que ela tenha, de que os governantes redescubram a nação e acreditem nas suas próprias nações, vai depender da ampliação da moralidade internacional, enfim. Nesse particular, creio que a produção do discurso vai ter um papel extraordinário.

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