São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996 |
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Visões pós-utópicas do paraíso
MANUEL DA COSTA PINTO
Tese de doutorado defendida na França, a obra de Machado da Silva é uma tentativa de buscar novos paradigmas teóricos, que permitam compreender -sem a nostalgia messiânica das esquerdas ou o triunfalismo nacionalista- as formas de sociabilidade e de práxis política do presente. Numa palavra, "Anjos da Perdição" é uma leitura pós-moderna de uma sociedade pós-moderna. O que isso significa? Simplesmente que seria redutor colocar um sinal negativo na frente de vetores sociais como o tribalismo urbano (as éticas particulares e anti-universalistas de grupos como ecologistas e rappers) e a indústria cultural (com seus ícones efêmeros) em nome de valores transcendentais, teleologias históricas, juízos críticos absolutos ou da alta cultura. Machado da Silva defende uma antropologia do agora, que acolha a diversidade de um universo irredutível a representações uniformes, a hierarquias culturais e a explicações unilaterais -tratando em pé de igualdade os romances de Lima Barreto ou Mário de Andrade e as telenovelas, os acontecimentos históricos (como o movimento dos "caras pintadas" contra Collor, signo da nova forma apartidária de fazer política) e a proliferação de seitas pentecostais. Na esteira de Michel Maffesoli (principal referência teórica da obra, ao lado de Durkheim, Gilbert Durand e Edgar Morin), ele propõe uma "descrição fenomenológica do cotidiano sensual e polimorfo". Para o autor, as diferentes teorias que tentaram descrever a sociedade brasileira podem ser entendidas como uma alternância entre o que chama de "futurismo" e de "presenteísmo" -e este é o mais importante achado do livro. Entre os futuristas estariam tanto deterministas e positivistas do século 19 (como Silvio Romero ou Euclides da Cunha), quanto nacionalistas do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros, reduto de intelectuais dos anos 50) e hegelianos ou marxistas (Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e, mais recentemente, Alfredo Bosi e Renato Ortiz) -todos professando a crença de que as contradições sociais brasileiras só se resolveriam, num futuro utópico, pela construção de uma identidade nacional estável e definida, no interior de uma sociedade universalista e igualitária, regida por uma razão homogeneizadora. Esta crença "modernista", diz o autor, desmoronou diante do horizonte anti-utópico da pós-modernidade, permitindo ver o outro lado dessas "teleologias do paraíso" e recuperar outras leituras do Brasil, tidas como conservadoras -caso de Gilberto Freyre de "Casa Grande & Senzala", que tipifica as relações sociais no Brasil sem lhes antepor um projeto idealizado e estranho a seu equilíbrio paradoxal entre dominação e miscigenação. A partir de Freyre, "Anjos da Perdição" retoma representações do Brasil como o paraíso do presente, como vivência fragmentária, barroca e orgiástica de dominadores e dominados demasiado sensuais para construir o inevitável Eldorado -e portanto entregues às delícias do momento. Machado da Silva vê nesse Brasil "presenteísta" uma "cultura do sentimento" que resolve seus conflitos de maneira sempre provisória, espontânea e instantânea, estabelecendo uma dinâmica de relações sociais que caminha no limiar entre racismo e tolerância, violência e acomodação, misticismo e sensualidade. Com seu estilo nervoso e frequentemente retórico, ele corre muitas vezes o risco de ser simplista (como ao afirmar que o consumismo desenfreado, velho fantasma frankfurtiano, é uma forma astuciosa de escapar, pela dissipação, à ética do trabalho), ou de reabilitar estereótipos sobre o caráter "lúdico", "improvisador" e "malandro" do brasileiro. Mas esse respeito à auto-imagem de uma cultura obedece à proposta teórica essencialmente pós-moderna de Juremir Machado da Silva, segundo a qual o imaginário não é um "sintoma" de causas ocultas (o "homem cordial" mascarando a violência, por exemplo), mas uma via de mão dupla na qual as representações expressam uma sociedade, tanto quanto a condicionam. Texto Anterior: DESCARTES 1; DESCARTES 2; RIO BRANCO; AUDEN; ARTE; CINEMA; GARCÍA MÁRQUEZ; POESIA; FILOSOFIA; LANÇAMENTO Próximo Texto: Dédalo de letras Índice |
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