São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996
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Quem perde com a mundialização

DO ENVIADO ESPECIAL

"O mundo mudou", diz FHC, mas o modelo básico de sua interpretação da sociedade brasileira permanece. Nessa parte da entrevista, FHC analisa algumas dessas mudanças e faz um esboço do que seria uma análise, com base em suas idéias, dos conflitos econômicos no país -quem perde e quem ganha na inserção do Brasil no capitalismo atual.
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Folha - O mundo mudou, as classes mudaram etc. E no Brasil?
FHC - Ocorre do mesmo modo, com uma diferença. É que aqui, como no caso dos escravos, você tem setores excluídos em proporção maior. Mas os efeitos desestruturadores do emprego, por causa da globalização, são menores aqui do que na Europa. Mas, de novo, não posso deduzir o que se passa aqui só a partir da globalização. Quem quiser estudar isso aqui tem que perguntar qual é a especificidade brasileira.
Folha - Então vamos olhar de perto a especificidade. Exemplo: a indústria têxtil. Quem sobrevive compra máquina de última geração, se torna competitivo e faz a camiseta mais barata do mundo. Mas vai para o Nordeste e usa mão-de-obra barata...
FHC - Isso. É bom. Isso é o que acontece. Imagine a passagem da manufatura para a grande indústria. Você diz: "Meu Deus, a grande indústria está destruindo a manufatura, que tragédia".
Folha - A indústria concorre no mercado internacional, mas usa uma vantagem comparativa "arcaica", que é pagar pouco...
FHC - Ainda bem que você botou as aspas. Numa situação específica é assim, as transformações não se dão sempre de uma maneira que beneficie a todos, pelo contrário. E por isso o conflito.
Folha - Qual é o conflito hoje? De classes?
FHC - As classes, como elas existem hoje. O problema é saber se elas são capazes de se unificar... Qual foi a grande proposta revolucionária de Marx? É que há uma classe, e só uma, que, por sua especificidade, seria a portadora dos valores universais. Isso hoje é difícil de sustentar, até por que essa classe, hoje, diminui, em quantidade, e muda de comportamento.
Folha - O sr. já parou hoje para olhar a situação como fez em 1962 com o empresariado nacional: "Não podem tomar o poder e fazer a industrialização, se aliam ao capital externo para não morrer..."
FHC - Eles se aliaram e não morreram. O que não quer dizer que eles não tenham procurado tirar as vantagens máximas.
Folha - Quem tira as vantagens máximas hoje, com a mundialização, no Brasil?
FHC - Aí depende. Como houve essa mudança geral no modo de produzir, com a globalização, etc, você teve aquilo que Marx jamais pensou, nem o Weber, nem ninguém -nem podiam: que o capital se internacionalizou, com muita rapidez, e ele é fator abundante. Certos países podem tirar proveito dessa situação, o Brasil entre eles. Folha - A questão incial era sobre os interesses que estam em jogo com a nova inserção do Brasil no capitalismo mundial. O sr. disse que o problema é como atuar para trazer vantagens para seu povo. É o papel do sr., como presidente, mas dá a impressão de que há um vazio de interesses no Estado, parece que não há classes determinando esse processo.
FHC - Não, não, mas há classes atuando no Estado. Quem? O setor empresarial moderno. Há setores do empresariado que estão chiando, porque estão perdendo. Você falou da indústria têxtil. Uma parte vai dançar, outra não vai. Isso não quer dizer que o Estado, na sua função reguladora, digamos, até certo ponto uniformizadora, não tenha que prestar atenção aos interesses que não têm força.
Você tem que levar em consideração os valores que não são econômicos, de integração social, de bem-estar. Mas os que têm força geralmente são os outros, são os que estão mais na ponta das coisas. Você tem setores imensos dessas novas classes médias atuando, a que passou pela universidade, a tecnocracia -e também os que não são a tecnocracia mas que vêm aqui e fazem pressão, fazem lobby. Os sindicatos, que bem ou mal, atuam e tem força para ...
Folha - Fazer seus acordos...
FHC - Fazer seus acordos... Então não há um vazio não. E tem sempre a questão dos excluídos.
Folha - Quem são? Os que nunca fizeram parte do mercado ou...
FHC - E os que estão saindo. A sociedade, largada a ela mesma, marginaliza com muita velocidade. É preciso compensar isso, por causa do equilíbrio político, porque os homens concretos precisam disso, não a "História".
Quais são os grandes núcleos de excluídos? Agora se fala muito dos sem-terra. São excluídos históricos. Isso é verdadeiro. E você tem que levar isso em consideração. Eles não têm força do ponto de vista estrutural. Dificilmente eles serão os portadores... não são classe universal, não existe mais isso. Mas isso não importa, não implica que você diga: "bom, então deixa que eles se arrebentem". Não, não pode. Se isso não for feito a própria dinâmica da sociedade fica prejudicada, é areia na máquina. Não é por bondade, é para que a máquina possa funcionar.

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