São Paulo, segunda-feira, 14 de outubro de 1996 |
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'Seleção artificial do sexo estimula os preconceitos'
DANIELA FALCÃO
A opinião é do sanitarista italiano Giovanni Berlinguer, que acaba de lançar no Brasil o livro "O Mercado Humano - Estudo Bioético da Compra e Venda de Partes do Corpo", em parceria com o dentista gaúcho Volnei Garrafa. "A ciência e a técnica não podem servir de instrumento para o homem satisfazer seus caprichos", adverte Berlinguer. O italiano -ex-senador pelo PDS (Partido Democrático da Esquerda)- critica a seleção artificial do sexo argumentando que ela consolida preconceitos. "A ciência não deve incentivar preconceitos. Deve lutar para reduzi-los ou eliminá-los." Para Garrafa, como hoje a ciência e a técnica podem quase tudo, as limitações passam a ser éticas. Leia a seguir trechos da entrevista que os dois concederam à Folha. * Folha - O que o sr. acha da iniciativa do Estado do Oregon (EUA) de priorizar o atendimento a pacientes que não fumam nem bebem? Giovanni Berlinguer - É engraçado. Os governos não consideram a saúde uma prioridade, mas impõem aos cidadãos a obrigação de defenderem pessoalmente sua saúde. Isso não é aceitável. A saúde deveria ser uma prioridade dos governos, e o papel dos cidadãos deveria ser de contribuir para o seu bem-estar. Há pouco tempo, os EUA estudaram a possibilidade de mudar a lei que estabelece os critérios para adoção, vetando o direito aos casais que fumam. Se nós seguirmos essa linha, também será legítimo proibir a adoção a casais que não praticam esportes, aos obesos ou aos que bebem socialmente. Folha - Qual deve ser a postura do médico em países que fazem esse tipo de discriminação? Berlinguer - O médico deve contribuir para formar uma consciência sanitária no paciente. Incentivando e alertando para a importância de o homem se alimentar bem, de se exercitar física e mentalmente. Mas o médico não deve e não pode limitar a liberdade de escolha do paciente. Folha - Até que ponto leis como a que proíbe a comercialização de órgãos surtem efeito em sociedades que não têm o senso comum de que tal ato é antiético? Berlinguer - Tanto a adoção de crianças quanto a doação de órgãos são soluções para uma realidade negativa. Seria preferível que as crianças crescessem em suas próprias famílias e que as pessoas não precisassem de transplantes. O primeiro mecanismo de qualquer país deve ser evitar as condições que geram esses fenômenos. O segundo mecanismo deve ser a ética: criar uma cultura na qual ninguém precise vender um órgão ou uma criança. E que também não haja ninguém disposto a comprar. A barreira legal tem de ser a última. Ela é necessária para evitar abusos, quando não se tem as duas condições anteriores. Folha - A legislação brasileira é frouxa em relação às adoções? Volnei Garrafa - É um absurdo o Brasil permitir que crianças saiam do país e nunca mais se tenha notícia delas. É um absurdo que o governo brasileiro não faça um acompanhamento dessas crianças no exterior, por dois ou três anos. É muito melhor que elas vivam num lar acolhedor no exterior do que debaixo da ponte no Brasil. Mas é preciso haver controle sobre a vida delas lá fora. Folha - Algum país faz esse acompanhamento? Garrafa - Não que a gente saiba. Toda a América Latina "cede" crianças para adoção em países da Europa e EUA, sem controle. Folha - Não é incoerente ter uma legislação que limite as doações de órgãos num país em que ainda há mitos que dificultam os transplantes, como no Brasil? Berlinguer - Acho as campanhas que incentivam a doação de órgãos indispensáveis. Mas elas devem vir acompanhadas de garantias para o doador. Há pesquisas no Brasil que indicam que 70% das pessoas se dizem dispostas a doar seus órgãos em caso de morte. O desafio é criar garantias para esses doadores. A primeira delas de que a morte seja verdadeira e que não haja mutilação de órgãos. O transplante só pode ser autorizado quando o cérebro do doador parar de funcionar e a morte for irreversível. A segunda garantia é de que a ordem dos receptores do transplante seja respeitada. E a terceira é a de ter certeza de que não houve comercialização dos órgãos. Folha - O empréstimo de útero é antiético? Berlinguer - É, desde que envolva comercialização. É preciso deixar clara a diferença entre um ato de generosidade e o comércio. O corpo de um indivíduo não é próprio para se fazer comércio. Acho o empréstimo de útero eticamente aceitável quando movido por um sentimento de solidariedade -entre irmãs ou até entre mãe e filha. Mesmo que traga problemas para o bebê. Folha - Se traz problemas para quem nasce, como pode ser ético? Berlinguer - É aceitável, mas não é o ideal. Devemos considerar os problemas que serão enfrentados pela criança. Tomemos como exemplo uma situação hipotética de uma mãe que empreste o útero a uma filha que não pode ter filhos. Esse bebê terá uma mãe legal e genética e outra mãe biológica. A avó será ao mesmo tempo mãe e avó. É uma situação complexa, e os psicólogos já advertiram que há grande probabilidade de haver problemas na relação entre os três. Folha - E o aluguel de útero? Berlinguer - Acho que o aluguel puro e simples é uma violência contra a mãe e o bebê. Contra a mãe, porque priva uma mulher que por nove meses teve um ser vivo em seu útero de uma relação que havia sido muito profunda. Folha - Como o sr. vê a questão da manipulação genética? Berlinguer - É preciso criar um senso comum para as tecnologias novas. Precisa-se elaborar princípios éticos que vão se tornar mais tarde senso comum. Folha - E a fertilização artificial? Berlinguer - Acho que é uma opção moral aceita para um casal estéril formar uma família. É uma opção legítima, ainda que repudiada pela Igreja. O que considero negativo é a possibilidade de se escolher as características dos filhos: sexo, cor dos olhos, inteligência. Ninguém tem o direito de determinar como será uma criança. Folha - Nem os próprios pais? Berlinguer - Nem eles. E há um problema prático: a possibilidade de se determinar tais características, ainda hoje, são incertas. Há 20 anos foi feito um experimento em que foram recolhidos semens de vários prêmios Nobel para utilizá-los na criação de pessoas de inteligência elevada. Quando fiquei sabendo, minha primeira reação foi rir muito. Porque pensei em todos aqueles grandes cientistas, literatos, se masturbando (risos). A segunda reação foi de indignação. O experimento feria a autonomia da criação. Os resultados não foram bons. Os que nasceram do experimento têm uma inteligência ligeiramente superior à média. Mas não se sabe se isso foi consequência genética ou resultado de essas crianças terem sido criadas em ambientes estimulantes. Folha - Um casal branco estéril tem o direito de escolher o esperma de um homem branco? Berlinguer - Considero que isso faz parte das opções éticas possíveis. Porque é uma opção que facilita a natureza, não é forçada. Folha - E a escolha de sexo? Berlinguer - É profundamente negativa. É uma seleção do sexo baseada em preconceitos ou interesse. Na Índia, os pais têm de pagar um dote muito alto quando a filha se casa. A seleção artificial do sexo significa consolidar preconceitos. E a ciência não deve incentivar preconceitos, deve lutar para reduzi-los ou eliminá-los. Folha - O sr. não admite a escolha de sexo nem na hipótese de uma família que já tenha cinco filhas poder optar por um homem? Berlinguer - Não. Conheço famílias com nove filhas, que são felizes. A ciência e a técnica não podem servir de instrumento para o homem satisfazer seus caprichos. Garrafa - Hoje, a ciência e a técnica podem quase tudo. As limitações não são nem científicas nem técnicas. São éticas. O pensamento deve ser: nós não devemos fazer isso porque não é bom, embora seja viável. Um exemplo: a clonagem de seres humanos. Hoje, tem clonagem de milho, soja. Se os cientistas quisessem, fariam a duplicação do homem em alguns anos. Mas não fazem porque há uma limitação ética. Texto Anterior: Os perigosos piuns Próximo Texto: Governo dá 'extra' de 25% a quem se demitir Índice |
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