São Paulo, segunda-feira, 14 de outubro de 1996
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Sampa

DARCY RIBEIRO

Sou meio paulista. Nasci em Minas, lá me criei, mas São Paulo me refez. Foi São Paulo que me catapultou para dez anos no Pantanal e na Amazônia, estudando a natureza humana tal como ela pode ser observada nos povos indígenas.
Sem aquele ambiente que havia em São Paulo nos anos da guerra, com tantos sábios e professores lá refugiados, eu jamais teria me proposto um destino tão ambicioso.
Neto de boiadeiros e garimpeiros, como eu, pode ser qualquer coisa. Não cabe é ser etnólogo, formado na Escola de Sociologia e Política, sob as luzes de Herbert Baldus.
Também aí São Paulo me deu um empurrão ao conceder o Prêmio Fábio Prado, que tinha enorme prestígio, para meu livro sobre os kadiwéus.
Digo tudo isso para mostrar que tenho direito de falar mal de São Paulo. Todo mundo fala bem de suas grandezas. Alguém tem de reclamar de suas feiúras. A que mais me agride e me horroriza é a incapacidade paulista de conviver com seus belos rios: o Tietê, até histórico e geográfico, e o Pinheiros, portentoso.
Londres, Paris, Berlim, Moscou se orgulham dos rios que as atravessam. Cuidam carinhosamente deles, como jardins aquáticos, em que o povo vai passear, namorar e até pescar.
São Paulo, não. Converteu seus rios magníficos em canais sanitários e os cercou, dos dois lados, com assassinas avenidas expressas, onde milhões de carros caçam gente desenfreadamente.
Como temos, aí na popa, um novo prefeito emergindo, é a ele, ou a ela, que me dirijo, pedindo: salve nossos rios. Para começar, as margens escassas que ainda têm livres. Depois, arrancando as avenidas imbecis para dar aos paulistas o que todo povo tem, o direito de espairecer vendo verdes e águas.
Imagino o Tietê e o Pinheiros cercados de grandes árvores transplantadas, de canteiros discretos de flores, de grama para a criançada jogar bola, de bancos para os namorados e até de "buquinistas" vendendo livros antigos.
Há idiotas dizendo que a brutalidade contra nossos rios resulta do progresso. Besteira. Nova York, Londres, Berlim e Moscou têm muito mais progresso, mas não abrem mão da beleza de suas águas.
Como vai haver mais gente prefeitando as outras cidades atravessadas pelo Tietê, igualmente descuidadas, alento no peito a esperança de que, fora da cidade de São Paulo, também o Tietê e o Pinheiros possam engalanar-se.
O mais doloroso de minhas chegadas a São Paulo pelo aeroporto de Guarulhos é atravessar aquela extensão imensa do Tietê sendo assassinado. Desobrigo os prefeitos de fazerem tudo o que prometeram, mas peço que salvem nossos rios, em nome da beleza e da civilidade.

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