São Paulo, terça-feira, 15 de outubro de 1996
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Teoria e prática

ANDRÉ LARA RESENDE

A entrevista de Fernando Henrique Cardoso a Vinicius Torres Freire no Mais! de domingo passado dá o que pensar. Uma longa entrevista do presidente, mas sobretudo uma entrevista do intelectual presidente. A combinação é sem dúvida singular.
Criticado como quem tem uma ação política incompatível com seu legado intelectual, é compreensível que o presidente responda ao que é claramente um ataque político: a tentativa de retirar de seu projeto a autenticidade e, portanto, a legitimidade, transformando-o em puro oportunismo.
A reiterada divulgação do suposto pedido para que se esquecesse o que escrevera só assim se explica. O político deve, portanto, responder e Fernando Henrique o faz com "aisance".
Mas não é a reconstituição da trajetória de suas idéias, das raízes à sua visão do país e do mundo hoje, o que me intriga na entrevista. Até aí teríamos simplesmente um político arguto e intelectualmente articulado, capaz de perceber que a acusação de incoerência com suas próprias idéias é politicamente perigosa e exige resposta. Fernando Henrique vai além.
Nossa história, embora subordinada, sempre teve um grau de especificidade que invalidava a aplicação direta das grandes sínteses formuladas nos países do Primeiro Mundo, fossem elas da esquerda ou da direita -era preciso reflexão própria. Nosso capitalismo foi e continua subordinado e dependente. Mudou, entretanto, o mundo e mudaram as condições -repensar é preciso.
Segundo a esquerda ortodoxa de inspiração marxista, para aumentar o bem-estar era preciso mudar o modo de organizar a produção. A prática mostrou que ainda não há forma alternativa capaz de concorrer com o capitalismo. Goste-se ou não, o desafio hoje é aumentar e generalizar o bem-estar dentro do capitalismo.
A esquerda perdeu então sentido? De forma alguma. A esquerda de hoje, a esquerda inteligente, é a que sem refutar irracionalmente, contra toda evidência, a esmagadora superioridade do sistema de mercado não abdica da crítica. Não abdica da crítica à desigualdade social, reconhece e não se conforma com a incapacidade do capitalismo de eliminar os bolsões de excluídos e está disposta a refletir e ousar.
Incorporar os excluídos é mais do que um imperativo ético: no mundo moderno, das comunicações e das democracias de massas, a redução das desigualdades, a universalização das oportunidades é do interesse de todos.
A esquerda moderna compreende que hoje a produção e o bem-estar dependem da capacidade de acelerar a incorporação dos excluídos.
O capital deixou de ser fator escasso: hoje é abundante e se internacionalizou em busca de novas oportunidades e da diversificação do risco.
Não há razão para pessimismo -a nostalgia, o desconforto com o novo, ainda que travestido de humanismo progressista, é apenas uma das mais perigosas máscaras do conformismo e do conservadorismo. As oportunidades hoje para uma ação reflexiva são maiores do que nunca.
Uma entrevista de quem reflete e faz questão que se saiba. Uma entrevista de um intelectual atento que, ainda que por mera vaidade intelectual, seria incapaz de pedir que esquecessem o que escreveu. Seu governo estará à altura?

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