São Paulo, terça-feira, 15 de outubro de 1996
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Como substituir o Carandiru

HÉLIO BICUDO

Com grande alarde, pois até o presidente da República esteve presente ao ato, assinou-se convênio entre os governos federal e estadual para a desativação do complexo do Carandiru, com a liberação de verbas que irão permitir a construção de seis presídios de segurança máxima, dois de segurança média (sic) e uma nova Casa de Detenção. Com isso, pretende-se retirar da atual Casa de Detenção e dos xadrezes das delegacias de polícia os presos que ali se encontram em condições desumanas, em ambiente onde prevalecem a promiscuidade e seus frutos, a violência e a corrupção. Aliás, antigo diretor da Casa de Detenção afirmava, não sem certa dose de razão, que, sem corrupção e violência, aquela casa já teria ido pelo espaço.
Muito bem quanto à desativação. Mas as suas consequências servem, a meu ver, muito mais para silenciar o clamor público, que quer o preso segregado, do que para que se dê início à construção de um sistema prisional realmente voltado para a ressocialização.
Quando o Plano Nacional de Direitos Humanos fala na desativação do Carandiru, ele quer uma nova política e não a manutenção, sob outra forma, da situação atual.
Mesmo porque o sistema que se baseia no presídio convencional está completamente falido. Serve muito mais para acoroçoar a violência e a corrupção, que são fatores adversos à recuperação, à educação e à ressocialização dos presos.
Aí está: o governo Quércia jacta-se de ter construído 29 presídios. E daí? Equacionou o problema carcerário? Evidentemente, não. E o governo Mário Covas sabe disso muito bem, pois a todo instante tem de lidar com rebeliões e fugas, buscando mesmo mecanismos para esvaziar o atual sistema. Por exemplo, solicitando concessão de indultos de competência federal e outras medidas assemelhadas.
A verdade é que o equacionamento da questão prisional não está apenas na construção de novos presídios, mas numa mudança radical na política de segurança, da qual a prisão ocupa apenas a ponta final, sem falar em instituições de atendimento ao egresso, para as quais não se viu a destinação de recursos, no caso, da maior importância, pois, sem a devida assistência, o egresso voltará a delinquir.
As instituições do Estado -no caso, a polícia, a Justiça (Judiciário, Ministério Público e OAB) e a prisão- não podem continuar como departamentos estanques. Da polícia preventiva depende a diminuição dos índices de violência; da polícia investigatória, o aperfeiçoamento da prova criminal; da Justiça, a rapidez e justeza de suas decisões; e das prisões, o seu compromisso com a ressocialização. Basta essa análise do problema, ainda que superficial, para evidenciar-se que a mera desativação de um complexo penitenciário e sua substituição por outro não irão criar meios mais adequados para a luta contra a violência e a criminalidade que a qualifica.
Precisamos fazer uma reflexão não apenas no nível da prisão. Sem uma polícia adequada, policiando determinada área permanentemente, quer dizer, os mesmos policiais na mesma área todo o tempo, para que a população passe a confiar na sua polícia, sem o atendimento imediato dos fatos delituosos pela Justiça localizada no mesmo espaço, com o divórcio hoje existente entre a imposição da pena e seu cumprimento, ou melhor, sem a descentralização da polícia, da Justiça e da prisão, vamos continuar a marcar passo, sem enfrentar o problema.
Por que, em vez dos grandes presídios propostos -uma Casa de Detenção com dois blocos construída para abrigar 1.200 detentos amanhã estará contendo três ou quatro vezes mais esse número-, não se constroem, de forma racionalmente descentralizada, pequenas unidades onde sejam baseadas a polícia, a Justiça e a prisão? Esta, com lotação adequada, de sorte a permitir que o juiz que processou, que impôs a pena, seja também o juiz de sua execução. E muito mais, que na execução da pena conte o conselho da comunidade!
É certo, teremos que possuir presídios de segurança máxima. Mas nada de exageros...
Em resumo, se houver vontade política para o reequacionamento da questão, com coisas pequenas, mas funcionais, e se, a essa orientação, adotarmos uma revisão das penas previstas no Código Penal, para alargarmos o instituto da pena sem prisão para os delitos de pequeno potencial ofensivo, mediante a prestação de serviços à comunidade, a perda ou restrição de direitos e multas adequadas, não estaremos fazendo propostas que ficariam bem no começo e não no fim deste século.

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