São Paulo, quarta-feira, 16 de outubro de 1996
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FHC aposta na modernização da mesma coisa

MARCELO COELHO
DE EQUIPE DE ARTICULISTAS

Fernando Henrique Cardoso, na entrevista ao programa "Roda Viva" de segunda-feira, mostrou mais uma vez seus amplos poderes de persuasão. É simpático, inteligente, realista. Sente-se bem, entre os entrevistadores de elite.
Apesar disso, sua aparição no "Roda Viva" e a entrevista que deu ao suplemento "Mais!" de domingo passado deixam a impressão de que ele não tem muito a oferecer de novo para o Brasil.
Há uma acomodação fria, pragmática, elegante à realidade "tal como ela é". O repórter pergunta, por exemplo, se, no fim do processo modernizador por que passa a economia brasileira, não haverá uns 40 milhões de excluídos sociais.
A resposta de FHC é tranquila e, com razão, antidemagógica: "Hoje quantos são? Uns 80 milhões?" E continua: "Não nego que, provavelmente, na dinâmica atual, não há força para incorporar todo mundo. Temos de aumentar a dinâmica para incorporar o máximo".
O que ele diz é a pura verdade. E é verdade também que, desde o Plano Real, a distribuição de renda melhorou um pouco, e de modo geral os índices sociais se mostram melhores do que há dez anos.
Quem reclama, na opinião de FHC, está só fazendo "nhenhenhém". E é um "bocó".
Quem domina, qual a classe que dá as cartas no atual regime? À pergunta do repórter, ele reage assim: "O regime está dando possibilidade a que os setores mais avançados do capitalismo tenham prevalência. Seguramente ele não é um regime a serviço do capitalismo monopolista nem do capitalismo burocrático, mas daquele que é competitivo nas novas condições de produção. Mas ele não é só isso. Incorpora novas massas ao consumo... Mas também não vou dizer que ele seja dos excluídos, porque não tem condições de ser."
Eis, novamente, a pura verdade. Mas também há aqui um tom, uma atitude de discurso, um estilo que soam falsos. Ou pelo menos pouco convincentes. Para quem ainda tinha dúvidas, temos um presidente visivelmente engajado na modernização econômica do país, que, é claro, favorece quem tem condições de competir. Quanto a quem não tem, ora, certamente o governo tratará de fazer políticas compensatórias etc., mas, enfim, o processo e o projeto são outros.
O estilo é confiante, descompromissado, condescendente e neutro. Espantosamente para um político, Fernando Henrique elimina duas coisas: a promessa utópica e a definição do adversário.
FHC não está contra ninguém, só mais a favor de alguns. E sua utopia é simplesmente negativa, a de garantir que o país não perca o bonde da história.
Fico pensando: mas é só isso, afinal? É só para isso que ele virou presidente? Mas aqui entramos numa tradição brasileiríssima. E antiquíssima. É a tradição de evitar, a qualquer custo, uma ruptura com o esquema de poder vigente.
Poderíamos ter um governo de extrema direita, ultramodernizador, coreano e tecnocrático, thatcheriano e rigorosamente neoliberal, que apesar disso entrasse em conflito com o sistema vigente. Faríamos uma "revolução" de direita. E ponto final.
Mas o curioso e o instrutivo no caso FHC é que ele não tem inimigos. E nisso se reproduz um esquema típico do Brasil. Todo o ímpeto modernizante de FHC se junta ao que há de mais atrasado na oligarquia brasileira, depende de fisiologia pefelista, de ACM e companhia. Se todo o discurso governamental fosse "moderno" e "neoliberal" para valer, seria quem sabe um alívio ver FHC arrebentando com os currais eleitorais, com o empreguismo nos Estados, com os anões do orçamento, com os monopólios estatais, com os latifúndios, com a jagunçagem hi-tech, com os esquadrões da morte usando telefone celular...
Mas a modernização brasileira se alia a Humberto Lucena e Antônio Carlos Magalhães, tendo José Sarney como fiel da balança e Orestes Quércia no PMDB. O problema é que, com todo seu antiesquerdismo, FHC tem de se aliar com tudo o que há de antimoderno.
Quem leu o recente livro de Raymundo Faoro, "Existe um Pensamento Político Brasileiro?" (ed. Ática), reconhece logo o que está acontecendo. Faoro explica os limites da modernização efetuada pelo marquês de Pombal, primeiro-ministro português no século 18. Não rompeu com nada, só modernizou. A grossa casca de privilégios, a ordem estamental, hierárquica, obscurantista, prevalecia contra todo liberalismo autêntico.
E onde estaria o liberalismo autêntico? Estaria em não ter medo do exercício da cidadania; em abrir-se à organização da sociedade; em não fazer uma modernização "de baixo para cima".
Quem seria capaz, hoje em dia, de organizar a sociedade civil, de fazê-la vitoriosa contra o Estado? A resposta poderia ser: o PT. Mas aí ocorre um paradoxo perverso. O que o PT foi durante o regime militar deixou de ser atualmente. À medida que se abriam para o partido possibilidades de vitória eleitoral, investiu-se mais nos setores já organizados (funcionários públicos, elite sindical, professores etc.) e menos nos setores não-organizados. De organizador das massas, o PT transformou-se em porta-voz de interesses localizados, corporativos, como se diz.
Usando de uma estratégia conciliatória, como a de qualquer outro governante brasileiro que tenha dado certo, FHC aposta numa modernização da qual muitos, certamente, se beneficiam um pouco ou muitíssimo, sem que se quebre de fato a estrutura da sociedade brasileira. Nem pelo lado direito, nem pelo lado esquerdo. Fica-se na modernização da mesma coisa.
Sorridente, FHC parece adotar o slogan de Lula: sem medo de ser feliz. Ele dá de ombros. Parece dizer: "Mas o que é que você queria? Qual é a alternativa?"
Isso me recorda a seguinte história. O marido chega em casa, às duas da manhã, com manchas de batom no colarinho, um perfume suspeito no pescoço. A mulher arma um escândalo. "O que é isso? Saiu com outra mulher?" Ele explica: "Não, não é bem isso. Fiz serão no escritório, depois saí com os amigos para uma happy hour. Imagine que no bar tinha uma loiraça, lindíssima, de 20 anos, que puxou conversa comigo. Ela me pediu carona. Estávamos passando na marginal, perto do motel Pretexto. Ela fez questão que eu conhecesse o lugar. Entramos. Ela tirou a roupa. Eu também. Daí, aconteceu..."
O marido suspira e conclui a história: "Você acha que eu tinha alguma alternativa?" A mulher esperneia e chora. Certamente, ela é uma bocó.

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